A arte de pensar livremente

A arte de pensar livremente
Aqui somos pretensiosos escribas. Nesses pergaminhos virtuais jazem o sangue, o suor e as lágrimas dos que se propõem a pensar com autonomia. (TeHILAT HAKeMAH YIRe'aT YHWH) prov 9,10a

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

ctrl-c, ctrl-v do site de Ricardo Gondim - Drummond e o fanatismo

Carlos Drummond de Andrade - Reflexões sobre o fanatismo
http://www.ricardogondim.com.br/Artigos/artigos.info.asp?tp=69&sg=0&form_search=&pg=1&id=2189


Não é fácil decidir se nossa época se caracteriza pelo excesso ou pela míngua de crença. Enquanto o século XVIII ficou marcado pelo racionalismo filosófico e revolucionário, e o século XIX pelo cienticismo e a idéia socialista,

o período em que vivemos não logrou ainda definir-se como um tempo ateu, místico, idealista, materialista, hedonista, surrealista, infantil ou bárbaro
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Engajado em todos os rumos, nosso tempo não se entregou a nenhum deles, como os amantes se entregam no ato amoroso.

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Contudo, certas formas de encantamento que observamos na vida contemporânea parecem confirmar a cediça verdade de que o homem é um animal religioso, ainda quando não o pareça e precisamente quando se esquiva a parecê-lo. Sendo o sentimento religioso aquele que mais identifica o indivíduo com a comunidade, temporal e intemporalmente, dir-se-ia que ele opera até na base dos movimentos dirigidos contra o próprio sentimento religioso.

O que mais caracteriza tais movimentos é, com efeito, a religiosidade profunda. Ritos, processos mentais, invocações, proselitismo, dogmas, crença ilimitada, tudo isso é posto em funcionamento-por baixo da zona de consciência, é claro- em nome de idéias e aspirações precisamente contrárias a qualquer espírito confessional.

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Copiando a religião no seu natural fervor e na sua doação total do indivíduo a uma verdade absoluta, o homem de hoje, na espécie a que me refiro, chega a copiá-la nas suas deformações mais evidentes, como sejam a intolerância e o fanatismo. Estas, como se sabe, eram palavras do vocabulário religioso, ou melhor, do vocabulário que exprime a exacerbação do espírito religioso, às turras com os próprios religiosos não-ortodoxos ou com o simples incréu.

Hoje, são termos do vocabulário político, de onde imperceptivelmente escorrem para a vida literária e até para a do esporte. Ao definir em seu Dicionário Filosófico o conceito da tolerância ("perdoemo-nos reciprocamente nossas tolices; é a primeira lei da natureza"), Voltaire tinha em mente as guerras de religião, que desde o primeiro concílio de Nicéia vinham ensangüentando o mundo. Hoje em dia os concílios não têm mais poder para devorar homens; mas os partidos, certos partidos, têm.

E como se devora um homem? Já não se usam leões, e as fogueiras de há muito foram proscritas; mas a imaginação do fanático descobrirá sempre um método prestante para dar cabo do não-fanático; ou de outro fanático. Nem importa que essa imaginação seja curta; o fanatismo provê. As modernas execuções políticas não necessitam sequer ser efetivas. Sem dúvida, seria mais delicioso e reconfortante para o ortodoxo fritar literalmente as vísceras do herege que negou a divindade do líder X ou do tratadista Y. Como, porém, o serviço ainda não está organizado em todas as partes do mundo (não esquecer que muitos são fritados antes de fritar), há que contentar-se a gente com assados espirituais ou em efígie. As palavras são de grande serventia nessa eventualidade,e, aplicadas com perícia, produzem a morte política, a morte moral, a morte literária e outras mortes provisórias. Se o serviço chegar a instalar-se, tais palavras valerão como apontamentos, e então talvez se suprimam os adjetivos qualitativos.

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Em rigor, não há ferocidade na imolação, real ou simbólica, do adversário. Há um sentimento de justiça social, quando não de comiseração humana. Nosso opositor é necessariamente um homem infeliz, desviado do reto caminho. Se ele abanou orelhas diante da primeira advertência da nossa folha oficial, se riu da segunda e não quis comparecer à audiência do nosso chefe imortal e infalível, se se recusa a pintar folhinha ou a fazer discurso rimado, há que lapidá-lo, por bem mesmo de sua alma. Todo o mecanismo psicológico e moral de Inquisição atua nesse raciocínio. Castigo é misericórdia.

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Sem dúvida, é suave (para quem a pratica) a ortodoxia. Ela nos dispensa de exercícios incômodos, inclusive de revermos o objeto de nosso culto.


Já a heterodoxia e o livre exame importam em riscos intelectuais, que não interessa afrontar. E se apelidarmos de científica a nossa ortodoxia, lastreando-a com algumas idéias gerais imutáveis, embora continuamente as esqueçamos na prática, teremos estabelecido o fofo travesseiro, não da dúvida, como queria Montaigne, mas da certeza consoladora e apta a conferir-nos a suprema dignidade intelectual.

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Eles também se sacrificam, os ortodoxos... É exato. A cada ortodoxia corresponde outra ortodoxia inconciliável. Esta liquida aquela. Os mártires proliferam, no alto dos postes, junto aos muros, nos subterrâneos, e como sempre nos tempos modernos, fora das religiões. Sem falar no sacrifício mental, voluntário, da auto-imolação a uma consigne de grupo.

Mas será o martírio prova de autenticidade de uma crença qualquer? Não constituirá antes um pseudo-argumento, próprio a iludir-nos, tanto quanto ao mártir?

Morrer por uma idéia é incontestavelmente sublime, porém na realidade dispensa-nos do trabalho de examiná-la, confrontá-la com outras, julgá-la. Variante útil: matar por uma idéia, que igualmente nos exime desse trabalho maior.

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Estranhas perspectivas de um mundo que se deseja banhado de liberdade e funcionando em harmoniosa coexistência de temperamentos e tendências. Aspiramos a uma terra pacífica, através da crescente militarização dos espíritos, para já não falar na preparação bélica total. Pretendemos o congraçamento humano, eliminando a divergência política ou estética. E fazemos da injustiça, da incompreensão e do ódio os veículos de uma distante e soturna justiça, a ser desfrutada por alguns eventuais sobreviventes.



Realmente reflito se lutamos uma guerra pessoal, ou apenas nos entregamos a algo que não nos pertence. Fanatismo, sempre temi essa palavra. Aliás, meu temor é com o autoritarismo vazio e ineficaz. Autoritarismo, para azar da humanidade, tem substituido as autoridades, líderes efetivos - não aqueles imputados e empurrados goela a baixo. Sábias palavras de Shiloah Vasconcelos: "O líder se faz pela confiança que ele inspira em seus liderados."

Nossos líderes inspiram confiança? Ligue a tv em qualquer noticiário fajuto e responda.

Thiago Barbosa

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