A arte de pensar livremente

A arte de pensar livremente
Aqui somos pretensiosos escribas. Nesses pergaminhos virtuais jazem o sangue, o suor e as lágrimas dos que se propõem a pensar com autonomia. (TeHILAT HAKeMAH YIRe'aT YHWH) prov 9,10a

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Da resposta ao amigo Jonathan

Amigo Jonathan,

Tocastes num tema que muito me aprecia, quer dizer, a experiência religiosa! Como eu estou – temporariamente? - afastado de um estudo sério da teologia e me encontro no campo da filosofia, posso dizer que o estudo da experiência religiosa e da mística constitui uma área que toca nossa tão amada teologia, e que, portanto, me é preciosa; afinal, depois do século XIX, como pensar uma teologia que alcance as pessoas sem pensar em como se produz e se efetiva a experiência do homo religiosus de uma sociedade dessacralizada?!

Sendo assim, vamos lá... Tenho algumas considerações a fazer sobre sua postagem.

Você disse: “A Mística não quer abandonar o dogma, mas transcendê-lo retirando dele seu aspecto de finalidade. Além disso, o místico não abandona a realidade e a objetividade necessárias a uma religiosidade sadia, no entanto, busca abrir-se ao goso infinito que se manifesta também na vida.”

Por uma questão de definição, que é de sua importância uma vez que este blog é lido por diversos públicos, devo dizer que a Mística a qual se refere é a “mística religiosa”. Pois, se uma vez você afirma que a “mística não quer abandonar o dogma” e esse dogma dito refere-se ao dogma religioso, essa mística só pode ser a mística religiosa. Se acima você fala sobre Deus, fala sobre a mística presente na hierofania, na teofania. Mas onde quero chegar com essa definição?

A “mística-religiosa” depende do dogma, ou seja, dessa objetividade “necessária a religiosidade” como você bem lembra. A mística que se separa do dogma, e aqui me refiro ao dogma religioso, é a mística do mundo dessacralizado: a mística ao ouvir uma ópera, ver um quadro de Da Vinci, ler um romance de Proust; ou seja, uma mística que não tem nada a ver com a mística religiosa. Mas no nosso caso discutido, a mística-religiosa depende do dogma pois o dogma é aquilo que fundamenta a realidade do homo religiosus. Esta realidade aqui é a realidade de um cosmo sacralizado, para usar a expressão de M. Eliade; ou seja, o cosmo onde a(s) divindade(s) estão em constante agir.

Esse cosmo sacralizado é a realidade por excelência para o homo religiosus, sendo que a permanência e a manutenção dessa “organização” do mundo num cosmo depende do dogma, que é o princípio básico e inquestionável. Sem um princípio imutável e inquestionável o cosmo regride ao caos, sendo que o homem religioso não consegue viver no caos: um mundo destituído de sentido.

Sendo assim, hei de discordar com você que a mística pretende retirar do dogma o aspecto de finalidade da experiência religiosa. O dogma, que se traduz em rito e liturgia como você diz a frente, é a própria mística da experiência religiosa. Como pois poderia ele se separar dela?

Vale falar sobre os ritos e liturgias que estas são representações do mito cosmogônico. Ou seja, as formas de culto, os sacramentos, os cânticos e etc, fazem alusão àquilo que já ocorreu antes mesmo que o mundo – esse cosmo organizado (redundância proposital) – fosse criado a partir do nada – ex nihilo. Em exemplos práticos: o sacramento da Santa Ceia corresponde a união dos fiéis a Cristo, tal como havia com Ele antes da queda: lembrando que o período em que o homem esteve no paraíso (e que você usa dessa metáfora no seu post) corresponde à realidade que todo cristão quer retornar, à realidade onde Deus estava efetivamente presente, portanto, corresponde à realidade por execelência. (Obs: meus amigos, essa visão que esboço não corresponde à teologia bíblica, mas à sistemática e à cristologia; afinal, a TB enxergará duas divindades completamente diferentes: uma no VT outra no NT... como vocês bem sabem). Por isso Tillich afirmará que entender esses ritos e liturgia é entender essa nossa preocupação suprema.

Mas seguindo esse raciocínio, irei discordar contigo que a espiritualidade fundamenta a experiência na doutrina. Você disse: “Começo pela espiritualidade que fundamenta sua experiência na doutrina o que, por sua vez, se desdobra no rito e na liturgia, principalmente no caso dos cristãos.”. A experiência religiosa mediante ao contato com o rito e a liturgia que não são meramente ritos e liturgias, mas propriamente hierofanias/teofanias, o homem passa a fundar a sua espiritualidade. O homem não cultiva espiritualidade para assim participar dos ritos, mas antes, participa deles e neles encontra o divino, e com este se une. Dessa maneira, funda sua espiritualidade.

Falando do existencialismo de Kierkegaard, mestre Eckhart e da busca pelo misterioso, devo lembrar que seja em Eckhart seja no filósofo dinamarquês, a experiência religiosa já fundava a sua experiência para com o mundo, ou seja, sua cosmovisão. Portanto, esse “ser indisível”, esse “Àquele que estava em tudo”, já figurava no constituinte do sentido do cosmo: esses mestre por sua tradição religiosa já colocavam no mundo um sentido sacralizado. Contudo, isso não constitui a “mística por excelência”, até porque a mística por excelência não existe: o que existe é a mística, é essa experiência metafísica com algo externo a nós, que durante um espaço de tempo parece fazer (e realmente faz) parte de nós – seja Deus, sejam homens, sejam animais, sejam objetos ou sentimentos.

Toda espiritualidade é mística, ao passo que conecta o homem à algo ou alguém metafísico! Portanto, por mais que possam existir Multiformes Espiritualidades, todas elas serão místicas, mesmo essa espiritualidade dita "racional", que até onde vejo, nada de efetivamente racional há: no máximo há uma racionalização in principio, para depois haver o "salto" como quis Kierkegaard.

Já escrevi muito e temo ter sido enfadonho e prolixo. De qualquer forma, espero ter esclarecido os pontos em que discordo do querido amigo: tarefa que só me tive ao trabalho de fazer por conta do diverso público que lê nossas palavras, de forma que não sejamos parciais.

Muito aproveitosas foram suas palavras e elas me inspiraram a escrever um novo post sobre mística! Até logo mais...

Alan B. Buchard

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Jared Diamond - As sociedades que entram em colapso.

Talvez um bom pensamento que precede à analise do vídeo que aqui posto seja o pensamento Paulino de que "o bem que eu quero fazer eu não faço, mas o mal que eu não quero fazer, esse sim eu faço". Gostei bastante e posto aqui. Uma leitura ecológica das atitudes das sociedades sobre suas responsabilidades com o ambiente.



Thiago Barbosa

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

SOBRE RELIGIÃO, TEOLOGIA E HISTÓRIA DO ANTIGO ISRAEL




Gostaria de iniciar, nesse espaço virtual, uma “série” de comentários e leituras sobre a Religião, Teologia e História do Antigo Israel. Conto para isso, principalmente, com a colaboração de meu amigo Thiago Barbosa, cujo trabalho de pesquisa atual está posto sobre a literatura veterotestamentária.

Basearemos esses comentários na literatura produzida por especialistas na área tanto da religião como da história e da cultura judaica. Utilizaremos textos de autores clássicos como pesquisadores recentes; todos dentro do círculo dos mais importantes nomes da pesquisa sobre o Israel Antigo para fundamentar nossa reflexão. Nomes como Martin Noth, G. Von Rad, A. Alt, G. Fohrer, N. K. Gottwald, H. Donner, G. F. Hasel, F. Crüsemann, I. Finkelstein, E. Gerstenberger e muitos outros. Isto quer dizer que não ousamos aqui falar de pensamentos próprios, antes, faremos comentários baseados em nossas leituras desses mesmos autores e pesquisadores procurando analisar textos bíblicos que nos “saltam aos olhos” afim de lançar luz sobre o emaranhado de expressões de fé, teologia e culto registradas no Antigo Testamento.



Primeiras Palavras




Primeiramente faz-se necessário clarificar o tipo de abordagem que será feita ou sobre que pressupostos e métodos teológicos estarão baseados nossos estudos que se seguirão. Para isso, uma retrospectiva à história da igreja cristã é necessária afim de extrair, principalmente da Reforma Protestante, o fundamento da pesquisa teológica do Antigo Testamento sobre o qual todos os teólogos e estudiosos sitados acima se baseiam.

Foi a partir século XVI que a aproximação das Sagradas Escrituras ganhou um novo registro de leitura e interpretação. Com o princípio Sola Scriptura , bandeira dos reformadores, deu-se início à luta contra a autoridade da Igreja sobre a bíblia e sobre as consciências, “preparando o terreno” da liberdade com o Livre acesso às escrituras. Uma batlha foi travada contra a escolástica e a tradição, dando uma nova forma à Teologia Bíblica. G. F. Hasel dá-nos um bom entendimento sobre esses novos caminhos da Teologia:



“ O termo Teologia bíblica tem duplo sentido: 1. pode caracterizar a teologia que está arraigada no ensinamento das escrituras e nelas fundamentada ou 2. pode caracterizar a teologia inerente à própria Bíblia. Neste último caso, trata-se de uma disciplina teológica específica... Compreendia-se que a Teologia Bíblica consistia em textos de prova ( dicta probantia ou collegia biblica) das Escrituras, extraídos indiscriminadamente dos dois Testamentos, de modo a apoiar os tradicionais 'sistemas de doutrina'. A função auxiliar da teologia bíblica, em contraposição à dogmática (sistemática), foi solidamente estabelecida por Abraham Calovius ao intitular de teologia bíblica o que antes era chamado de teologia exegética...” (Hasel-1987)



A Teologia Bíblica irá incorrer num movimento emancipatório em relação à Teologia Dogmática. Já em 1745 deixa de ser um auxilio para a Dogmática transformando-se aos poucos numa disciplina independente.

A era do Aufklärung (Iluminismo), principiou o movimento de libertação da Teologia Bíblica com a contribuição do pensamento racionalista. Este reagiu fortemente contra toda a forma de sobrenaturalismo sustentado pela Teologia Clássica. Como afirmou Hasel “a razão humana tornou-se o padrão definitivo e a fonte principal de conhecimento, isto é, a autoridade da Bíblia como registro infalível de revelação divina fora rejeitada”.

A bíblia, então, torna-se um livro antigo, como qualquer outro documento o qual deve ser estudado e interpretado. A partir desse momento, a Teologia Bíblica passa a se tornar rival, como o declarou Anton Friedrich Büsching em 1756, transformando-se aos poucos numa disciplina de caráter histórico.

Num ano decisivo – o ano de 1787 - ouviu-se declarações como a conhecida declaração de J. P. Glaber : “ A teologia bíblica possui um caráter histórico: ela transmite o que os escritores sacros pensavam de temas divinos; já a teologia dogmática possui um caráter didático: ela transmite as ponderações filosóficas de determinado teólogo acerca de temas divinos, levando em conta sua capacidade, época e região que viveu, e orientação ou escola, entre outras coisas.”

É com base nessa chamada “Teologia Bíblica” que pretendemos basear nossos comentário sobre textos bíblicos.

Sobre essa disciplina poderíamos ainda falar muito, principalmente do período – penso eu – de mais auto nível da reflexão séria e comprometida com o diálogo com as ciências e com a história: o século XIX. Mas acho que para uma pequena introdução em forma de esclarecimento é suficiente. Daremos continuidade nas próximas postagens em conjugação com temas diversos que surgem e continuarão surgindo.



Jonathan

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Teologia do Povo

Em sua história, o homem sempre buscou explicações para todas as coisas, sobre a realidade e sobre sua existência. Não obstante, também buscou formas de justificar suas ações que, muitas vezes,  tinham respaldos sobrenaturais, melhor dizendo: os deuses poderiam aprovar e justificar ou não os atos dos homens.

Quantas coisas fizeram os homens em nome dos deuses em toda a história da existência humana, aqueles que se apoiavam  em ideias que criaram  a respeito desses seres divinos? Bem, em se tratando de ideias originais sobre deuses, João Nerval justifica-se teologicamente:







Jonathan

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Multiforme Espiritualidade

Algumas coisas da vida ficam marcadas para sempre na mente e no coração. Para iniciar essa pequena palavra sobre a relação do homem com Deus, quero começar contando uma experiência, resumidamente, que tive na bela cidade de Paraty, mais especificamente em Trindade no estado do Rio de Janeiro. Penso que muitos dos leitores de Cristianismo Livre já estiveram lá e constataram o que eu e Kel, minha esposa, constatamos: uma cidade extasiante, bela e calma, com praias que lembram mais a descrição das histórias primordiais do Gênesis, quando do paraíso do Éden.

Nesse paraíso pude desfrutar de toda a beleza das paisagens, das águas quentes do mar, da boa comida e de muitas outras coisas que este "Jardim" proporciona. Mas, como todo Teólogo atento às múltiplas linguagens do mundo criado por Deus em busca de sentido que o permita responder as questões mais profundas, dei-me, num momento, a contemplar a beleza de tudo aquilo que me cercava: o mar, a fauna, a flora, o céu estrelado nas noites frescas a beira-mar. Nesse momento de contemplação fui tomado por um sentimento sublime, como se algo dentro de mim estivesse se unindo a algo que estava além de mim mesmo e senti como se estivesse sendo abraçado por alguém, alguém muito maior e mais forte que eu.
Não posso explicar a alegria que invadiu meu coração naquela hora. É como se tivesse me tornado uma indefesa criança e fosse tomada no colo por um pai amoroso.
Como traduzi esta experiência?

Redescobrindo a espiritualidade que se dá, também, na vida, na relação com as coisas criadas! Como o disse Dr. Edson de Almeida "é redescobrir a sacralidade da vida", e do mundo. Podemos traduzir esta espiritualidade numa linguagem antiga, de significado semelhante na qual a comunhão plena com Deus se dá de forma imediata. A Mística não quer abandonar o dogma, mas transcendê-lo retirando dele seu aspecto de finalidade. Além disso, o místico não abandona a realidade e a objetividade necessárias a uma religiosidade sadia, no entanto, busca abrir-se ao goso infinito que se manifesta também na vida.
Nessa mística da contemplação da natureza e na contemplação de tudo aquilo que é belo e que de muitas formas alcança o mais intimo do ser, pode-se experimentar Deus quando tudo isso se torna sacramento. Assim como "não nos basta o alimento, é preciso que o alimento se transubstancie em comida: mesinha arrumada, cheirinho bom do ingrediente... é preciso que a comida se transforme em sacramento."

Para melhor explicar essa comunhão com Deus faz-se necessário uma palavra tanto a respeito do significado desse tipo de espiritualidade - a mística - como de sua relação com a religiosidade objetiva: a doutrina, os ritos e a liturgia. Começo pela espiritualidade que fundamenta sua experiência na doutrina o que, por sua vez, se desdobra no rito e na liturgia, principalmente no caso dos cristãos. Não há nada de errado basear-se em dogmas, ritos e liturgia. Como afirmou Tillichi, é preciso "entender esse conjunto de doutrinas como representação de nossa preocupação suprema, a qual queremos servir num determinado grupo, que também se fundamenta na mesma preocupação suprema", e tudo o mais que deriva dela: rito e liturgia.

Como representação da preocupação última, daquilo que nos toca incondicionalmente, pode, então, ser vista a mística. Ser místico é ser "dominado" pelo interesse profundo que há em nós que, segundo Kierkegaard, é uma "paixão infinita" que se derrama em direção Àquele que é e está em tudo, ao mesmo tempo que não é e está para além de todas as coisas. "O menor de Deus repleta todas as criaturas e sua grandeza não se encontra em nenhum lugar", como bem disse Mestre Eckhard. É atrás desse ser sublime, indizível, que a alma do homem vai, em busca do "misterioso" num movimento imediato.

Isso traz algumas dificuldades para o espírito protestante, pois nele não é aceitável um movimento do homem para Deus, ao contrário, para os filhos da Reforma, somente Deus pode ir até o homem por meio da livre Graça manifesta em Jesus Cristo. No entanto, vemos muitos protestantes que demonstraram aspectos dessa espiritualidade mística, inclusive Lutero. Mas isso é um assunto para outra conversa.

Concluindo, queria deixar registrado como um simples pensamento sobre espiritualidade e para a reflexão dos leitores uma outra proposta, ou, uma outra linguagem da espiritualidade e da comunhão com Deus. Um acesso a Deus que é capaz de transcender os símbolos, a linguagem, o dogma, a liturgia ( não deixando de tê-la muitas vezes), o ríto, aquilo que pode ser mais sagrado em nossa tradição religiosa.

Poderíamos continuar, mas penso que devo parar por aqui, pois inauguro aqui minha volta ao Cristianismo livre e não quero ser enfadonho. Quero humildemente contribuir com outras reflexões, talvez um pouco mais maduras, mais informativas, que sejam do interesse dos leitores desse blog. Agradeço a oportunidade a meus amigos Thiago e Allan por permitirem minha estadia por aqui.

Cordialmente

Jonathan