A arte de pensar livremente

A arte de pensar livremente
Aqui somos pretensiosos escribas. Nesses pergaminhos virtuais jazem o sangue, o suor e as lágrimas dos que se propõem a pensar com autonomia. (TeHILAT HAKeMAH YIRe'aT YHWH) prov 9,10a

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Quando os quadrinhos dizem as regras do jogo


Sempre gostei dos quadrinhos. Ver super-heróis, donzelas em perigo,e, é claro, os magistrais vilões. Interessei-me inicialmente por Chico Bento e a trupe da Mônica. Adolescente underground que fui, e penso ainda ser, deparei com o mundo subterrâneo e subcultural dos “Marvel Comics”, bem como os épicos fantasiosos de Conan. Mais tarde, pelos idos de 1996 apresentaram o RPG, principalmente o STORYTELLER gótico de VAMPIRE: the Mascarade. Entupia-me de leituras góticas, histórias baseadas nas idades das trevas, no medievo, hora fantasiosas, hora reais, hora mitológicas. Após o mundo do RPG mergulhei profundamente na história dos povos antigos, amava a pesquisa, livros empoeirados, letras e escritas com datações antiquíssimas. De modo que, quando encontrava um discurso religioso, entendia a mente que o concebia, enxergava nele história e ficção, juntíssimas, de mãos dadas, no intuito de levar o povo à devoção “divinamente inspirada”.



Com o tempo percebi a baixeza da mistura entre ficção e realidade histórica. A baixeza, por minha conta, se dá no intuito em que nem todas as partes envolvidas no jogo sabem das regras. No RPG, o mestre sempre trazia a memória a natureza fantasiosa de suas descrições. Assim, os demais jogadores sabiam que, por mais realística que fossem as descrições, ainda assim seriam fantasiosas. Já nos jogos da fé, quem sabe as regras do jogo é o lider, o pastor, o “religioso mor”. As ovelhas, o outro lado do jogo, pouco sabem sobre a realidade e ficção das leituras feitas. Passa a ser um jogo tendencioso, de mal caráter, onde um sabe de seu poder de manipulação e mescla entre história real e realidade ficcional. Já a outra parte apenas se entrega, na ilusão pueril de que as palavras ditas sejam todas realidades palpáveis e divinamente inquestionáveis.



Se queres jogar o jogo, abra as regras. Somente assim seremos ao menos ansiosos pela honestidade junto aos jogos da fé.



Lembro dos ditos e quadrinhos, quase que escatológicos, de Robert Crumb.

Robert Crumb (30 de agosto de 1943, Filadélfia, Pensilvânia) é um artista e ilustrador, reconhecido como um dos fundadores do movimento underground dos quadrinhos, e é considerado frequentemente como a figura mais proeminente nesse movimento, tendo como ponto de partida a publicação do gibi artesanal "Zap Comix". Seus trabalhos foram bastante apreciados na cena hippie, tendo deixado marcado nesta década a tira Keep on Truckin´ e os personagens Mr. Natural (que pode ser lido como uma sátira de Maharishi Mahesh Yogi e semelhantes, numa época em que era moda gurus espirituais) e Fritz The Cat, um gato boa vida que usa muitas drogas e tem uma vida sexual bastante lasciva.



Crumb foi tema de um documentário intitulado Crumb, lançado em 1994 pelo diretor Terry Zwigoff. O filme foca-se nele e em seus dois irmãos, os três com um certo grau de sociofobia, frutos da criação de um pai severo e uma mãe superprotetora. Há, sobretudo, bastante destaque no irmão mais velho, Charles, e sua influência sobre seu irmão Robert. É narrado, em certo momento, que Charles obrigava seus irmãos a desenharem quadrinhos, na infância.



Na década de 1970, começou a colaborar com o roteirista e arquivista Harvey Pekar, um homem da classe media baixa de Cleveland que narrou suas visões de mundo, mostrando o cotidiano tedioso da classe media americana, sem preocupações. Muitas vezes os percalços desta parceria foi retratada nos próprios quadrinhos feitos em parceria pela dupla.



Produziu frequentemente HQs autobiográficas com sua esposa, Aline Kominsky-Crumb, desenhadas a quatro mãos e publicadas na revista The New Yorker. Tais obras estão sendo republicadas no Brasil pela revista Piauí.



Passou a adaptar obras literárias de autores como Franz Kafka, Charles Bukowski e Philip K. Dick. Em 2009 lançou a adaptação quadrinhistíca do Gênesis, o livro da bíblia. E é pensando em bíblia, religiosidade e sua produção em HQ do “ Bereshit” que apresento uma facção da entrevista idealizada e feita por Rosane Pavan em http://www.cartacapital.com.br/app/coluna.jsp?a=2&a2=5&i=5168.


Você acredita em Deus?

Não sou religioso. Mas fui criado no catolicismo. Em escola católica, de freiras e irmãs. Acredito que, quando criança, não tinha razões para desacreditar no que me contavam. Por volta de 15, 16 anos, comecei a fazer meus questionamentos. Rapidamente rompi com o catolicismo depois que comecei a questioná-lo. E passei a estudar outras idéias sobre o assunto, sobre as coisas chocantes que não lhe contam sobre a Igreja, sobre o comportamento dos papas. Especialmente na Idade Média, comportavam-se muito mal. Ainda se comportam. Parei de me confessar aos 16 anos. Nunca mais me tornei membro de uma igreja estabelecida ou de uma religião. Não sigo qualquer doutrina religiosa, de maneira alguma. Contudo, ainda me sinto muito interessado pela procura espiritual, mas de uma maneira mais ligada ao intelecto. Eu certamente acredito que existe uma força que move nossos destinos. Maior do que nós. Não sabemos o que é. É grande demais para que nós tenhamos qualquer chance de saber do que se trata. Mas é interessante estudar, perguntar-se, imaginar o que ela poderia ser. Eu pessoalmente não acho que alguém vá encontrar inspiração no Gênesis. As histórias são boas, mas como guia espiritual ou moral, não servem. Você terá problemas se ler o livro com essa intenção! É primitivo. A moral é tribal. Existe um plano. E o cara se sente honrado em segui-lo. Deus nos deu essa terra, essa terra pertence a nós, toda essa história... Contudo, procurei sempre ilustrar o que está no texto. Ló fez sexo com suas duas filhas, coisa muito estranha. Isto está escrito e eu desenhei. Eu evitei ser cômico, lúbrico, sensual, explícito. Se as pessoas se sentirem ofendidas com o que virem, problema delas. Não podemos agradar a todos. Especialmente pessoas seriamente religiosas. Não posso ajudá-las. Às vezes o texto não descrevia exatamente o que estava acontecendo. E então inventei o que ilustrar, até certo ponto. A cena diz: “Antes que Deus decidisse destruir a raça humana... Porque ele viu o mal no coração do homem.” Mas o que ele viu? Que mal o homem fez? Então eu tinha de mostrar que mal esse homem estava fazendo. Eu não estava indo contra o texto, porque o texto me deixava livre para imaginar que mal seria esse. Mas se o texto dissesse que os personagens se deitavam no chão, sim, eu os deitava no chão. Pessoas fazendo sexo, sim, eu desenhei.


Seu Deus é tradicional, um velho homem barbudo. Foi assim que ele se apresentou em seu sonho?


No meu sonho de 2000 ele era muito mais complexo. Mas eu decidi desenhá-lo velho, de longas barbas e severo, com a face do patriarca. E o fiz homem porque assim ele é descrito _ Ele, segundo o texto bíblico. Tudo isto partiu dos hebreus. Eu até pensei em fazê-lo mais judeu... em uma segunda leitura, havia mais componentes africanos... A história toda pertence à tradição semita. A europeia faz Deus com os cabelos loiros. Então decidi desenhá-lo de cabelos mais escuros, na tradição semítica.


Esse Deus que você viu no sonho não seria apenas você?


Eu? Bem, tudo o que aparece nos sonhos remete a alguma parte de nós mesmos. Pelo menos é o que dizem. Mas a imagem do sonho, tão vívida, definitivamente não pertencia a mim, estava do lado de fora. A verdade é que ele entrou em mim, falando comigo de alguma forma. Mas eu só fui capaz de visualizar essa criatura. Sua face era muito severa. E também repleta de ira. Um deus muito velho, com barba. O deus do Gênesis é o da justiça. Não é bonitinho, nem especialmente amigável.


Tudo parece muito respeitoso sob este aspecto para que alguém se incomode com suas ilustrações.


Eu imagino que os fundamentalistas, especialmente alguns judeus ortodoxos, se sentirão muito incomodados. Porque, segundo eles, não se pode ver a face de Deus, de forma alguma.


Talvez estejamos vivendo um momento especialmente de trevas, em que a liberdade de ação ou de pensamento pareça indesejável a grande parte das pessoas.


Concordo. Vivemos um momento obscuro.


Nunca lhe interessou desenhar o Novo Testamento?


Sempre me interessou o Gênesis. E a história do Novo Testamento apresenta algumas dificuldades para ser contada. Você tem de escolher uma entre as quatro versões de Mateus, Marcos, Lucas ou João. Não há como narrá-las todas. Ou então é preciso encontrar uma maneira de extrair as histórias interessantes e seguir com elas. Isto seria o que eu faria, provavelmente. Mas Chester Brown já contou essas histórias, e muito bem, em suas leituras dos evangelhos de Marcos e Mateus.


Talvez com Crumb tenha sido assim: Leu por demasia os quadrinhos de cultura underground, percebeu-se da mescla desonesta dos “mestres do jogo” entre realidade histórica e realidade ficcional,e, finalmente, cansado da desonestidade do jogo sentou-se, deixando o jogo para aqueles que ainda não se aperceberam das irregularidades.

Thiago Barbosa

Nenhum comentário:

Postar um comentário