O artigo de Iria Hauenstein aborda pontos de cunho legal encontrados no livro de Deuteronômio, onde aponta uma perspectiva ecológica nas sociedades locais e na população contemporânea. O conceito de ecologia, elucidado no texto, indica a complexidade da questão e estudos complementares mostram a necessidade de um processo de conscientização, já que a ecologia se apresenta com a intenção de estabelecer as relações possíveis entre organismo e seus nichos de sustentação abióticos. Foram destacados três textos do livro de Deuteronômio que apresentam conotações ecológicas sob a perspectiva do autor. São eles Dt 22,6-7; 20,19-20 e 23,13-15.
O livro abordado é um dos livros angulares da Bíblia Hebraica, tratando-se de um códice legal compilado e sistematizado com base em leis diversas e de épocas distintas. O principal intuito deste “rolo escriturístico” era organizar o desenvolvimento social e religioso dos judaítas, sendo responsável pela conceituação e manutenção das classes sociais após findar-se a dominação assíria. Em Leis sobre a vida e a morte, a estrutura textual se dá sob moldes de quiasmo, típicos da literatura hebraica, sendo a abordagem central a vida e morte (Dt 19,1-21,9. A abordagem demonstra a organização política e econômica sob e durante o período “Josiânico”, como reação a práticas imperialistas dos assírios. O código utiliza-se de um discurso sob a égide do sagrado para implantar, na sociedade recebedora, nova práticas permeadas por princípios como misericórdia (hesed) e inclusão dos menos favorecidos.
Em “pássaros e ninhos” (Dt 22,6-7) a estrutura aponta para um bloco alocado em “o direito privado” (Dt 21,10-23,14), uma parcela onde se acham agrupadas leis sobre diversos temas, inclusive de caráter preservacionista ou ecológico. O trivial da natureza, no caso um ninho de pássaros, é tomado como ponte para uma reflexão mais profunda. O processo de maternidade ganha ares de sacralidade, mesmo para as criaturas de YHWH, a maternidade é a manutenção da vida, portanto, sua importância é maximizada. Tal consciência está testemunhada também em outras culturas antigas, com divindades específicas para a proteção e manutenção dos animais. O pressuposto apontado ganha força com o texto de Is 10,5-34. A força do julgo assírio sobre seus colonizados é metaforicamente comparado à prática humana em relação a pássaros e ninhos. Vendo a necessidade das espécies, e evitando a sua extinção, temos uma esperança, pequena, de ver e poder contemplar, também no futuro, a integridade de toda a criação. A manutenção da vida, sob qualquer aspecto de espécie ou grupo social, grupamento humano ou as demais esferas bióticas, a manutenção dos “ninhos e pássaros” é a expectativa da esperança futura sob uma visão integralista da vida.
As leis sobre a guerra em Dt 20 apresentam toda a motivação necessária para a batalha. As guerras podem ter uma abordagem de manutenção da vida, porém, corriqueiramente, refletem as políticas expansionistas da nação em questão. Em “Contra o desmatamento sem sentido” (Dt 20,19-20), o texto claramente refere-se aos prejuízos ecológicos causados pelas invasões. Em Joel 1,7 observamos que o corte indiscriminado de espécies vegetais poderia acarretar danos durante uma geração. Obviamente, o intuito primário da manutenção de espécies frutíferas advém da sua utilização na alimentação da própria tropa durante o estado de sítio, bem como da sua utilização econômica no período de colonização efetiva após a conclusão do sítio e sucessiva invasão à cidadela. Assim, discorrendo sobre a prática de guerras ou batalhas, o texto de Dt 20 recomenda medidas de abrandamento, incluindo de sustentabilidade do desmatamento. O texto exposto se apresenta em reação às práticas imperialistas dos assírios, afinal, com a grandiosidade de seu império, o período de sítio seria deveras reduzido, não se apresentando a necessidade de manter as tropas com alimento por dias a fio.
Em “Excrementos e santidade” (Dt 23,13-15) aborda a necessidade da limpeza do acampamento, sob a presença verificadora de YHWH a circular por entre o povo nas aldeias e cidades do Israel Antigo. A antropomorfização de YHWH é evidente quando o sagrado, presente em meio ao povo, não deve precisar ver coisas indecentes (restos fecais, urina, polução noturna ou mesmo lixo orgânico residencial). O termo hebraico “erwah” em geral refere-se à nudez, aqui provavelmente deve estar se referindo a uma “coisa descoberta”. O texto aborda pontos característicos para a manutenção de uma sociedade, como o saneamento básico, sob a força do texto religioso na expectativa de imputar a essa necessidade social a força e obrigatoriedade necessária para a parcimônia deste grupo do antigo Israel.
O autor conclui que Israel, por esses textos, compreende a Terra como casa comum, foi criada por Deus e entregue aos seres humanos como espaço do exercício de domínio, trabalho e de cuidado.
O texto apresenta a possibilidade de que parte substancial do texto de Deuteronômio, sob a reforma do rei Josias, torna-se o molde social para a hegemonização de um grupo de pós-exilados, recém-libertos, mas ainda sob a tutela do seu rei e da elite social. As transições observadas podem retratar a tentativa de se construir uma sociedade estruturada, que modifica sua realidade campestre para uma nova realidade das cidades, transitando de efetivamente coletores para mercadores, pastores, ferreiros, cavadores de poços, manufatores e monarcas. Os hábitos nômades ou seminômades são substituídos por sedentarismo. A mudança de circunstâncias faz com que as leis sejam ampliadas, alteradas, romanceadas. Tudo isso pode ser observado no governo josiânico, porém, com o pseudônimo de YHWH.
Thiago Barbosa
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