A arte de pensar livremente

A arte de pensar livremente
Aqui somos pretensiosos escribas. Nesses pergaminhos virtuais jazem o sangue, o suor e as lágrimas dos que se propõem a pensar com autonomia. (TeHILAT HAKeMAH YIRe'aT YHWH) prov 9,10a

sábado, 21 de novembro de 2009

Simples comentário sobre Descartes



  • Aconpanhando a iniciativa do amigo Thiago, ou talvez imitando-o, disponho meu simples comentári sobre o dualismo de Descartes. Ai vai:

Antes de nos aproximarmos do pensamento filosófico de René Descartes, faz-se importante entender o contexto histórico no qual vivia, quais os paradigmas epistemológicos ainda em voga naquela época e quais os questionamentos emergentes. A partir desses pré-conhecimentos podemos ter uma melhor idéia do dualismo em seu pensamento.

René Descartes nasceu no século XVI no dia 31 de março de 1596 em La Haye, hoje La Haye-Descartes. Estudou no colégio de La Fleche, cursou por algum tempo medicina e licenciou-se em Direito em Poitiers. Serviu

ao exercito francês, viajando por vários paises da Europa. Decidiu então dedicar a sua vida aos estudos se instalando na Holanda vindo a falecer em Estocolmo em 11 de fevereiro de 1650.

Ele viveu num período de grande crise. A Europa havia sido assolada por terríveis epidemias, das quais a mais conhecida a Peste Negra ou peste bubônica. Citam-se como surtos mais importantes a peste de Milão, no século XVI (190.000 mortes), a peste de Nápoles, em 1656, a peste de Londres em 1655 (70.000 mortes), a de Viena em 1713 e a de Marselha em 1720.

Outras transformações já vinham ocorrendo desde antes de seu nascimento. Essas, ocorridas em toda a Europa, no campo político, econômico, religioso, da arte e principalmente das ciências, evidenciavam uma verdadeira “ruptura com o mundo anterior” como diz Danilo Marcondes em sua Iniciação a História da Filosofia.

No período em que viveu Descartes, todas as estruturas da sociedade estavam submetidas a autoridade e controle da Igreja. Um controle Ideológico que começara a ser questionado por não corresponder as situações nas quais vivia a população da época. A autoridade da igreja passa a ser alvo de severas críticas

O espírito desbravador, que motivou as nações a conquistar novas terras, vinculadas às descobertas de cientistas como Giordano Bruno, Copérnico e Galileu, levaram os homens daquele tempo a repensar toda sua cosmovisão. O mercantilismo, derivado do investimento nas grandes navegações, trazia uma nova proposta econômica, baseada no comércio e no lucro individual.

A Reforma Protestante trouxe consigo a arma letal que abalou as estruturas da Igreja Católica. Com a proposta do “Livre Exame de Consciência” corroborou para o desenvolvimento de uma ciência “emancipadora” da qual Descartes vai ser um dos principais defensores.

Num mundo ainda dominado pela autoridade da Igreja, Descartes emerge como um “libertador”, conduzindo a ciência e a filosofia à uma condição diferente, talvez se pudesse dizer, mais evoluída, baseada na racionalidade e na subjetividade do próprio homem. È inaugurada a idéia de Modernidade.

O desejo de Descartes é buscar o conhecimento de forma pura, com isso ele se contrapõe à Tradição e assume o ceticismo radicalmente. Sua filosofia é construída a partir do pressuposto de que somos capazes de compreender a realidade por meio do exercício da própria razão. Os pressupostos da tradição passam a ser colocados em dúvida. A ciência clássica versus a nova ciência, escolásticos versus humanistas, protestantes versus católicos.

DUALISMO DE DESCARTES

Descartes foi o inaugurador do pensamento emancipado ou Moderno. Sua intenção era encontrar “fundamento seguro para a construção do edifício do conhecimento”. Era totalmente insatisfeito com a argumentação e fundamentação da tradição com respeito a realidade. São suas as palavras:

Eis a razão pela qual, tão logo a idade me permitiu sair da sujeição de meus preceptores, abandonei inteiramente os estudo das letras. E decidindo-me a não mais procurar outra ciência, além daquela que pudesse existir em mim próprio, ou então no grande livro do mundo, passei o resto de minha mocidade viajando (...), recolhendo diferentes experiências, testando a mim mesmo nas armadilhas que a sorte me proporcionava e, por toda a parte, fazendo uma tal reflexão sobre as coisas que se apresentavam, para que pudesse tirar delas algum proveito.

Essa insatisfação de Descartes, tem relação com as proposições do movimento reformador, em relação a interioridade do homem “versus” a dimensão exterior. Essa tensão se da em que essa dimensão exterior, pressupõe a autoridade externa, o instituir das verdades a partir de algo exterior ao próprio sujeito. Ai nasce a questão do dualismo. A necessidade de configurar o conceito de verdade e certeza, compreendendo as coisas reais a partir da própria razão. Assim escreveu em suas meditações:

Notei, há alguns anos já, que, tendo recebido desde a mais tenra idade tantas coisas falsas por verdadeiras, e sendo tão duvidoso tudo o que depois sobre elas fundei, tinha de deitar abaixo tudo, inteiramente, por uma vez na minha vida, e começar, de novo, desde os primeiros fundamentos, se quisesse estabelecer algo de seguro e duradouro nas ciências”.

O que Descartes busca e a compreensão do mundo, emancipado de qualquer interferência exterior ao próprio entendimento. Deseja buscar o “sentido” das coisas reais através de atitudes reflexivas, individuais e subjetivas, recusando fundamentos pré-estabelecidos pela tradição. Ele transfere os fundamentos da compreensão delegando essa incumbência ao indivíduo. O conhecimento recebido de fora, e não somente o externo como também o subjetivo, como ele mesmo identifica,não estão isentos de erros . Por isso Descartes se lança a investigação metódica a fim de encontrar “algo seguro” a respeito do conhecimento.Com todo esse esforço ele demonstra a importância da substancia pensante(a Razão ou o pensamento) dando-lhe maior ênfase, que à substancia extensa(corpo ou matéria) . Nessa dualidade, o pensamento, o COGITO, é a base da apreensão da realidade.

A forma com que o filósofo se utilizou para investigar e se aproximar do pensamento correto, ou da verdade, foi o método da dúvida. Descartes procurou duvidar de todas as proposições até que não fosse possível espaço para nenhuma desconfiança, ou seja, até que se chegasse a uma certeza indubitável. Esse meto foi adotado por ele para refutar os céticos que questionavam todo conhecimento, até a possibilidade do conhecimento e da existência de Deus. Através desse método ele propôs argumentos que persistiam na dualidade do finito, que se refere ao homem ente finito; e o infinito, o eu metafísico - o pensamento.

Ao tratar do pensamento, que Descartes também denomina de eu, afirma ser a única estrutura indubitável. Aplicando a dúvida a tudo que se apresenta inclusive a própria apreensão sensorial, que pode ser falha, ele afirma que os pensamentos são o fundamento do conhecimento verdadeiro. Se houvesse possibilidade de duvidar do pensamento, estaria então duvidando da própria existência, pois, segundo o filósofo, Penso logo existo. Como confirma M. G. Morente “... porque os pensamentos estão tão imediatamente próximos a mim, que se confundem com meu próprio eu. E é esse imediatez que os torna indubitáveis e ao mesmo tempo, os faz fundir-se, todos eles, na unidade do eu.”

A questão mais intrigante se da em que o cogito é competente em conhecer a realidade, mas como podemos ter pensamentos com respeito ao infinito? Se nossa relação cognitiva se dá somente com objetivo, como podemos pensar no infinito, mesmo que Descartes conceba a idéia metafísica do Eu, independente da substância extensa?È nesse momento que Descartes demonstra que ainda possui laços com a tradição. Ele não rompe com a pressuposição da existência de uma rés infinita, de uma mente infinita que possui relação com a rés cogitans.

A filosofia de Descartes não possui um viés solipsista , ao contrário, da margem a existência de um ente o qual não se pode alcançar empiricamente na experiência individual. O PENSAMENTO SOBRE Deus existe dentro do pensar mesmo que este seja distante do alcance do pensar. Como isso ocorre?

Descartes admite que a idéia de Deus é inata a mente humana. E se essa idéia é inata à mente, e se o nosso pensar é o único assimilador da verdadeira realidade, então a existência de Deus é real. O próprio Deus imprime em nossa mente a idéia de sua própria existência apesar de não podermos obter provas objetivas. Assim como diz a filosofa Bárbara Santos “só um ente infinito (Deus) pode ter posto em mim a própria ideia de infinito; ou seja, só a existência de um sujeito infinito vai permitir em mim a ideia de infinito.”

CONCLUSÃO:

Penso que a estruturação da filosofia de Descartes, principalmente no que se refere ao seu dualismo, é na sua forma um protesto, uma atitude político-pragmática em relação à autoridade e domínio da instituição cristã da época – a Igreja. È um grito de liberdade em relação à manipulação desonesta e incoerente do colégio eclesiástico, que exercia um governo ditador sobre as ciências, sobre o pensamento e sobre a liberdade dos indivíduos.

Descartes acaba sendo, intencionalmente ou não, o inaugurador da autonomia do indivíduo, da liberdade de consciência, do desenvolvimento das ciências, do inicio da modernidade.

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