A arte de pensar livremente

A arte de pensar livremente
Aqui somos pretensiosos escribas. Nesses pergaminhos virtuais jazem o sangue, o suor e as lágrimas dos que se propõem a pensar com autonomia. (TeHILAT HAKeMAH YIRe'aT YHWH) prov 9,10a

terça-feira, 17 de novembro de 2009

ERGO SUM - O dualismo em René Descartes

Nos períodos que marcam o declínio medieval é possível observar uma mudança epistemológica na Europa. A epistemologia aristotélica passa a apresentar fortes inserções no pensamento europeu desde a invasão muçulmana na região da Espanha no século XIII, tal fato atinge seu apogeu no advento da Reforma Protestante – movimento liderado pelo monge Martinho Lutero, com enorme força nos países germânicos – que culmina com a secessão entre Igreja Católica Apostólica Romana e Igreja Reformada Luterana. O conceito de Sola Scriptura de Martinho Lutero desafiou a autoridade absoluta da Igreja, e a cristandade foi fragmentada como nunca antes. Os protestantes (Igreja Reformada) substituíram a autoridade papal e eclesiástica pela autoridade da Bíblia dizendo que apenas a Bíblia infalível podia dirigir a consciência do crente.

A hermenêutica, ciência interpretativa que até então se apresentava atrelada e comprometida com a interpretação arbitraria da Igreja Católica Apostólica Romana, é direcionada ao ápice de sua liberdade e critica com as postulações emanadas da obra de Immanuel Kant em Crítica da Razão Pura. Tal obra propõe que todos os escritos e discursos devem ser analisados com todo o rigor crítico, inclusive a Bíblia. Tais informações permeiam e preparam nossa leitura da Europa e prepara para a filosofia de René Descartes.

A filosofia de Descartes marca o ápice da transição da epistemologia e filosofia embasada no teocentrismo para uma nova perspectiva que apresenta o antropocentrismo como pensamento hegemônico. Sua filosofia emoldura a transição do “medievo” para a modernidade. O desenvolvimento filosófico do COGITO emana da realidade que diz ser a hermenêutica cristã incapaz de regenerar a humanidade. Descartes insiste na autocrítica dizendo ser o homem é vulnerável a caminhos “prediletos, jamais devemos imaginar que algo é verdadeiro só porque professores o defende ou porque os pais o ensinaram dessa forma, é necessária uma reflexão pessoal do homem sobre seus “caminhos”.

Volta-se ao pensamento sobre a finitude e a contingência humana ao passo que se descrê na fé religiosa. A filosofia cartesiana parte do pressuposto lógico de estudo do EU (noético) de modo que a primazia do estudo noético permite o desenvolvimento do conhecimento ontológico. Tal inovação possibilita a conotação de um homem emancipado e inserido em sua cosmovisão de caráter mais abrangente.

Vejo manifesto que há mais realidade na substancia infinita que na finita, (...) de certo modo, tenho antes em mim a noção do infinito, que a do finito, antes a de Deus, que a de mim mesmo. Pois como podia eu saber que tudo que desejo é dizer, que algo me falta, e que não sou perfeito, se não houvesse em mim a idéia de um ser mais perfeito, o qual me adverte da imperfeição de minha natureza”. Tais apontamentos de Descartes permitem a visualização de um filósofo teísta, já que a finitude humana só pode ser considerada caso exista a infinitude divina.

Descartes descobre e afirma a existência do cogito como princípio de sua filosofia. Entretanto, este fundamento, até aqui, só possui a certeza de existir como ser pensante e nada mais do que isto. Desta forma, o fundamento configura-se como exclusivamente subjetivo. Entretanto, Descartes necessita de um fundamento objetivo. É preciso passar da certeza (subjetiva) à evidência (objetiva).

A fim de isto conseguir, Descartes, após a descoberta do cogito na segunda meditação, inicia a meditação seguinte buscando conhecer melhor a si mesmo: "... ocupando-me somente comigo mesmo e considerando meu interior procurarei tornar-me pouco a pouco mais conhecido e familiar a mim mesmo". Busca conhecimentos que talvez ainda não haja percebido, mas crê que é uma coisa pensante, ou seja, Descartes busca algo além da certeza do cogito. Procura um fundamento de certeza. Da análise do cogito conclui: "... acredito que já posso determinar como regra geral que todas as coisas que concebemos clara e distintamente são verdadeiras". Desta forma, estabelece o seu critério de verdade. Continuando a sua meditação, Descartes afirma que admitiu várias coisas como muito certas e patentes, as quais, no entanto, reconheceu posteriormente como duvidosas. Concluiu isto devido à incerteza do conhecimento sensível.

Continuando seu pensamento, Descartes fala que entre os pensamentos que o sujeito possui existem as idéias, as vontades ou afecções e os juízos. As idéias são as imagens das coisas. As vontades ou afecções são os desejos. Os juízos são os atos nos quais eu afirmo ou nego, ou seja, acrescento algumas coisas por esta ação às idéias que tenho daquela coisa. Descartes cita que, no que diz respeito às idéias, elas não podem ser falsas "porque, quer eu imagine um cabra quer uma quimera, não é menos verdadeiro que imagino tanto uma quanto a outra" . Também não há falsidade nas vontades ou afecções, "já que, mesmo que eu possa desejar coisas más, ou nunca existindo, não é por isso menos verdade que as desejo". O erro, portanto, só pode acontecer na esfera dos juízos.

O principal erro - e o mais normal que se pode mostrar - consiste em que “eu” julgue que as idéias que se encontrem em “mim” são semelhantes ou conformes às coisas que se situam fora de “mim”; pois, com certeza, se eu considerasse as idéias somente como certas modos ou formas de meu pensamento, sem querer relacioná-las a algo de exterior, mal poderiam elas oferecer a oportunidade de errar. Segundo ele, não se pode confiar numa inclinação natural, pois, esta se evidencia apenas com certa propensão a acreditar em algo e não numa razão que garante a verdade desta mesma situação.

É neste contexto que Descartes insere o princípio de causalidade que terá caráter primordial na análise da idéia de Deus. O princípio da causalidade manifesta-se na concepção de que a idéia é um efeito. "É coisa evidenciada pela razão que deve existir ao menos tanta realidade na causa eficiente e total quanto em seu efeito". O princípio de causalidade é usado como meio de se efetuar uma transição entre a certeza da própria existência e o conhecimento de Deus.

Descartes cita que o sujeito tem em si a idéia que representa a si mesmo (cogito), outras que representam Deus, as coisas corporais e inanimadas, os anjos e os outros homens. Destas idéias, a que possibilitará ao sujeito sair de seu isolamento é a idéia de Deus, pois se deve considerar que ela é a única que não pode proceder do sujeito. Portanto, é necessário obrigatoriamente concluir, de tudo o que foi dito antes, que Deus existe, porque, mesmo que a idéia de substância esteja em mim, pelo próprio fato de ser eu uma substância, não teria a idéia de uma substância finita, eu que sou um ser finito, se ela não me tivesse sido colocada em mim por alguma substância que fosse de fato infinita.

O COGITO cartesiano permite o pensamento humano de forma auto-reflexiva, consciente e emancipado. Este pode ser o principal legado da filosofia cartesiana, que é marcada pelo dualismo e subjetivismo. A mutação do conceito de dúvida – que no “medievo” recebe uma clara conotação negativa e atrelada ao pecado passa, agora, a receber uma conotação positiva e libertária – assume aspectos emancipadores para o homem moderno e permite que a análise de sua consciência seja seu direcionamento à existência.

A filosofia do COGITO (ergo sum) é o fundamento do homem transcendendo a matéria em um âmbito individualista. Apresenta uma realidade humana, não apenas subjetiva de um sujeito, mas primordial para um homem que se liga ao mundo. Há um desprazer no mundo exterior, ao passo que se prima por uma consciência investigativa. Tais apontamentos permitem que a obra de Descarte aponte para a finitude do homem, ao passo que remete este mesmo homem à infinitude perfeita de Deus. Desde a perspectiva ontológica se vê a dicotomia entre o homem e o mundo. Deus funciona como um princípio de segurança e certeza.

Descartes conclui que Deus é a causa perfeita da sua idéia de perfeição. Para Descartes, basta um pequeno passo desde “Penso, logo existo” para chegarmos a “Penso, logo Deus existe” (cogito, ego Deus est). Tendo chegado à convicção de Deus é e é perfeito, Descartes tira da sua mente a noção da dúvida de que Deus é um grande enganador.



Thiago Barbosa

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