Ao pensar em movimento missionário, missão, ou mesmo cristianismo – que se mostra nesse século XXI como um hiperônimo de um caleidoscópio de hipônimos que emergem desse termo tão abrangente e diversificado – notamos certa indisposição ou reticência, mesmo entre os seguidores da mesma fé e/ou denominação, sobre as formas e formatos das ações desenvolvidas nas igrejas. Estas estruturas ou modelos de se fazer missão se apresentam aos montes, cada qual ressaltando suas virtudes ou posturas, dificilmente constatando e assumindo suas falhas e debilidades. Tal posicionamento propicia o questionamento sobre como se apresenta um movimento missionário que se sustenta junto ao paradigma do mundo moderno globalizado de forma eficaz.
Observa-se que as posturas da missão[1] por vezes se assumem, em certos aspectos, hostis a outras culturas e/ou povos. Quase que detentora do conhecimento da plena verdade – no aspecto positivista – onde não se valoriza ou busca compreender a postura e posicionamento do outro ser humano. Críticas severas são feitas à missão cristã, ela seria uma forma de “intolerância, de arrogância e de violência” [2]. O que pode se assemelhar a uma postura arrogante do agente da missão se tornaria verdadeiramente egoísmo caso não houvesse a ação da missão. Como efetivamente realizarmos missão sem a postura arrogante que é costumeiramente associada a essa ação?
A valorização bíblica da missão – aqui sim como MISSIO DEI – transcorre todo o texto bíblico, e não apenas o trecho neotestamentário. A idéia de “Nação Santa”, ou ainda “Povo escolhido” são terminologias que apontam ao menos para olhares desatentos, aos valores também egocêntricos. Possivelmente essa tendência tenha sido fomentada pela postura Judia em relação às outras nações. A palavra dita a Abraão em Gn 12:1-3 foi “internacional e universal em seu oferecimento, escopo e propósito” [3]. Sendo assim, uma visão mais respeitosa quanto aos sujeitos da missão por parte dos agentes da missão seria o mínimo a se esperar, e nunca uma postura arrogante e egocêntrica de “conhecedores e detentores da verdade salvífica”, que comumente é notada no trato missionário com as culturas.
Observando a mudança no paradigma da missão, David J Bosch observa que, a missão deve responder a problemas nunca antes imaginados, de forma concernente com a essência da fé cristã. Assim: a) o ocidente perde sua hegemonia sobre o planeta; b) há a contestação de estruturas injustas de opressão e exploração; c) há a consciência de que pessoas e meio ambiente são interdependentes; d) os progressos, o desenvolvimento, assumem papéis de divindade; e) temos a possibilidade, por nossa inconsciência ambiental de exterminar a raça humana; f) as teologias cristãs já não podem alegar superioridade sobre as outras teologias que emergem sobre o mundo. Defrontados por uma mudança tão radical nos paradigmas globais podemos afirmar que grande parte de nossas missões estão ainda alicerçadas no medievalismo, enquanto o mundo caminha a passos largos, tendo como força motriz tais diretrizes.[4] Em um mundo onde o cristianismo já não é força hegemônica - e que assume a importância da diversidade comunicativa entre paradigmas diferentes - como se deve viabilizar a MISSIO DEI nesse século de mudanças tão profundas?
Pensar em um movimento uniforme para abordar esses novos paradigmas seria utópico e até ingênuo. Afinal, sérias divergências foram observadas nas Reuniões do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) no que concerne à missão e diálogo. Entre essas relações conflituosas destacam-se “os conflitos entre Norte-Sul, o conflito entre evangelicais e ecumênicos e aquele entre igrejas Ortodoxas e o CMI” [5].
A urgência do diálogo inter-religioso se dá no âmbito de a teologia cristã de missão rever seus valores e preceitos de forma a abordar e, eventualmente, posicionar-se respondendo as questões existenciais mais profundas que emergem do novo paradigma epistemológico do século XXI. Percebendo nas culturas e pessoas não cristãs a manifestação de um Deus universal e, por que não, plural. Dificuldades são encontradas quando percebemos posicionamentos mais enrijecidos de pessoas que não estão dispostas a dialogar para estabelecer um caminho de convivência com as outras pessoas, agora, despidos da arrogância e egocentrismo dos cristãos “historicamente conhecidos” [6], há de se estabelecer novos tempos para a MISSIO DEI no mundo.
“Missão e diálogo, respectivamente testemunho, desenvolvimento de diálogo com pessoas de outras religiões doravante são considerados no CMI como características inseparáveis, porém distintas da transmissão cristã da fé” [7]. Cria-se aqui uma dicotomia no discurso evangelical; tais pensadores da missão evangelical se propõem a assumir a importância do dialogo religioso, sem, contudo, modificar sua postura de fazer missão. Uma incoerência discursiva que denuncia uma negligência na reinterpretação das necessidades do movimento missionário e da missão em si. A missão feita nesses moldes denuncia-se como conquistadora, opressiva, coercitiva, e jamais libertadora e salvífica como enunciada nos padrões da MISSIO DEI, corroborando com John Stott e Walter Kaiser Jr (cf. notas 2 e 3).
Por diálogo inter-religioso entende-se “conversação preparada entre pessoas de diferentes religiões a respeito de temas previamente combinados” [8]. Destacando-se o “diálogo da vida”, como a convivência entre os diferentes; “diálogo ético”, como postura conjunta perante problemas universais; e “diálogo sobre diálogo”, como a discussão sobre o diálogo inter-religioso nas comunidades de fé.
A postura inicial para o diálogo religiosos é a resposta para a arrogância que ronda as ações missionárias. “Cristãos podem iniciar o diálogo, podem fomentá-lo ou até mesmo acatar a iniciativa de outros. De forma alguma, porém, cristãos deveriam tentar determinar diálogo, para que este permaneça genuíno” [9]. A postura receptiva e humilde, contrastante com a arrogância e prepotência inicial são condições sine qua non para o desenvolvimento da missão como MISSIO DEI.
Vemos assim no discurso apologético da missão protestante, principalmente no âmbito brasileiro, uma semelhança gritante com o discurso da igreja ortodoxa. O dialogo inter-religioso é vilipendiado, como se fosse totalmente alheio ao pensamento e estruturação das ações missionárias. O testemunho cristão (apologética) é vista e apresentada como martírio da igreja frente ao restante do mundo.
“O que devemos àqueles que têm outra fé exige de nós com urgência ainda maior que nos portemos como os antigos apologetas cristãos, confirmando a verdade, seja ela qual for, ressaltando, porém, ao mesmo tempo, a abundância e autenticidade da verdade salvífica cristã, mesmo que com isto nos exponhamos ao risco da perseguição” [10].
Ao vencermos este posicionamento dogmático da salvação do homem, verteremos para os apontamentos da CMI em Nairóbi, 1975. “(...) cremos que em nenhuma geração Deus deixou de se testemunhar. Tampouco podemos excluir a possibilidade de que Deus fale aos cristãos a partir de fora da igreja” [11]. Imbuídos desse pensamento perceberemos a urgência de rever os paradigmas e dogmas que perfazem a ação missionária em nossas instituições/organizações/igrejas, de modo tal que “nunca deveríamos condenar ou desprezar outra cultura, mas, ao invés disso, respeitá-la” [12].
“O verdadeiro cristianismo da Bíblia não é uma religiãozinha escapista, egoísta, quentinha, aconchegante e segura. Pelo contrário, ela mexe profundamente com a nossa segurança e garantia. Ela é uma força explosiva e centrífuga, que nos arranca do nosso estreito egocentrismo e nos atira para o mundo de Deus, a fim de testemunhar e servir. Precisamos, pois, encontrar maneiras práticas, seja individualmente, seja através de nossas igrejas locais, para expressar esse comprometimento” [13].
Deste modo é possível que os conceitos a respeito da missão sejam revistos, que seus agentes não sejam mais comissários das instituições, mas sim, agentes de um reino onde a salvação é direcionada a todos. Finalmente a salvação irá ao mundo todo, não como imposição, mas como amizade e respeito. Deus será manifesto ao mundo, e não à dogmática cristã institucional. Diálogo é manifestação de Deus no mundo, a tempo e fora de tempo.
[1] Aqui se opta pelo uso do termo missão correlacionando conceito parâmetros que, mais especificamente, seriam próprios da missiologia ou movimento missionário. Assim, missão torna-se, no presente trabalho, um termo mais abrangente que engloba desde o “pensar em fazer missão”, a “forma de fazer missão” ou o “ato de fazer missão”.
[2] STOTT, John – Nosso Deus é um Deus missionário. Em: Ouça o espírito, ouça o mundo. São Paulo: ABU, 1998. P.359.
[3] KAISER JR, Walter. A chamada missionária de Israel. Em: WINTER, Ralph; HARWTHORNE, Seven. Missões transculturais: uma perspective bíblica. São Paulo: Mundo Cristão, 1987. P.28.
[4] BOSCH, David J. Mudanças de paradigma na missiologia. Em: Missão transformadora – mudanças de paradigma na teologia da missão. São Leopoldo: Sinodal, 2002. P. 225-237.
[5] LINNEMAN – Perrin, Christine. Conselho Mundial de Igrejas. Em: Missão e diálogo inter-religioso. São Leopoldo: EST, Sinodal, CEBI, 2005. P.73.
[6] Referindo aos conhecidos casos de uso da ação missionário como forma de coerção e domínio no desenvolvimento imperialista da Europa e dos Estados Unidos junto aos povos da África e America Latina.
[7] LINNEMAN – Perrin, Christine. Conselho Mundial de Igrejas. Em: Missão e diálogo inter-religioso. São Leopoldo: EST, Sinodal, CEBI, 2005. P.74.
[8] LINNEMAN – Perrin, Christine. Conselho Mundial de Igrejas. Em: Missão e diálogo inter-religioso. São Leopoldo: EST, Sinodal, CEBI, 2005. P.79.
[9] LINNEMAN – Perrin, Christine. Conselho Mundial de Igrejas. Em: Missão e diálogo inter-religioso. São Leopoldo: EST, Sinodal, CEBI, 2005. P.81
[10] Declaração ortodoxa sobre missão promulgada em 1988 Neápolis/Grécia. Cf em: LINNEMAN – Perrin, Christine. Posição confessional: vozes da igreja ortodoxa. Em: Missão e diálogo inter-religioso. São Leopoldo: EST, Sinodal, CEBI, 2005. P.99.
[11] Cf. em: LINNEMAN – Perrin, Christine. Conselho Mundial de Igrejas. Em: Missão e diálogo inter-religioso. São Leopoldo: EST, Sinodal, CEBI, 2005. P.86.
[12] STOTT, John – Nosso Deus é um Deus missionário. Em: Ouça o espírito, ouça o mundo. São Paulo: ABU, 1998. P.361.
[13] STOTT, John – Nosso Deus é um Deus missionário. Em: Ouça o espírito, ouça o mundo. São Paulo: ABU, 1998. P.375.
Thiago Barbosa
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