A cultura não é uma grandeza estanque. Nela estão revelados todos os valores que regem e direcionam uma comunidade. Sendo assim, as variações existentes dentro de um grupo social serão, necessariamente, refletidas nos princípios e valores adotados e apregoados em uma cultura especifica.
O cristianismo primitivo, ainda nos idos do século I d.C, mostrou-se pronto em se “inculturar”, mostrando a universalidade da ação de Deus encarnado em Jesus. A promessa especificamente feita aos judeus transborda as barreiras étnicas e geopolíticas alcançando agora também os gentios. Nesse aspecto, Paulo de Tarso foi brilhante, um exímio leitor de sua sociedade e re-interpretador das verdades cristológicas. O mundo deve isto a uma hermenêutica paulina, pronta em verificar as especificidades de um povo e apresentar um evangelho condizente com tais culturas.
Essa hermenêutica paulina, que alcança boa parte da Ásia Menor - uma área incrivelmente extensa mesmo para os dias atuais - era acolhida por estas culturas, pois condizia enormemente com sua realidade. O evangelho era, e ainda é, uma grandeza que vai de encontro às necessidades mais profundas do ser humano. A Bíblia, como palavra de Deus, de igual modo deve ir de encontro às necessidades mais profundas das pessoas. Assim, ela não pode apenas mostrar-se presa a uma realidade histórica estagnada à sociedade que a escreveu, porém deve renovar-se a cada dia com a interpretação dinâmica e pró-ativa daqueles que se dispõe a assumi-la como palavra de Deus. As necessidades humanas das culturas modificam-se em suas especificidades, contudo os princípios formadores dessas necessidades, desses anseios, continuam os mesmos, No Crescente Fértil da Palestina, nas cidades da Ásia Menor, o existencialismo europeu moderno, o fundamentalismo econômico e religioso da América do Norte, ou ainda as dores da opressão da América Latina. Todos, em seus princípios formadores, encontram-se exemplificados nas linhas do texto bíblico. Lá se arvoram as descrições de um povo que conheceu a guerra, o exílio, as tormentas climáticas, os desmandos econômicos, a distorção da justiça, a iniqüidade e desesperança mais profundas; todavia, lá também se encontra a relação proximal com Deus, bem como sua encarnação na própria humanidade corrompida por intermédio de Jesus Cristo. No fim da desesperança que fundamenta o desenvolvimento de uma cultura há o surgimento da esperança. Uma luz no fim do túnel.
Na clara definição de que Deus se manifesta de maneira holística junto a cultura dos homens, devemos estar prontos para re-interpretar, re-analisar, re-visitar os dizeres dos textos bíblicos e estarmos prontos para torná-los palavras de vida, que superam a temporalidade dos quase dois milênios que nos distanciam do evento cristológico. Aqui, no século XXI, a Bíblia ainda fala, com a mesma força e profundidade que falava aos judeus que a produziram, porém atingindo as especificidades de nossos tempos, de nossa cultura.
Deste modo é urgente que nos preocupemos com as interpretações que surgem já desde o século XX. A interpretação da cultura por Paul Tillich, por exemplo, deve ser de constante consulta, pois o cristianismo deve sim condizer com as mudanças características e específicas dos nossos dias, de igual modo a morte prematura de Dietrich Bonhoeffer impediu-nos de compreender melhor seu “cristianismo arreligioso” de um mundo que se tornou adulto. A teologia da esperança em Moltmann e Rubem Alves que culmina anos depois na teologia da Liberação em Gustavo Gutierrez e os “irmãos Boff”, desdobrando-se nas difusas formas de libertação de grupos minoritários que são oprimidas por uma sociedade culturalmente estabelecida. Nasce da Teologia da Libertação a teologia Negra, a teologia Feminista, a teologia Indígena, a teologia de Movimentos Campesinos, ou mesmo teologia Operária. Mais recentemente as urgências do repensar sobre o meio ambiente emolduram a teologia ecológica, exemplificada por Leonardo Boff e Haroldo Reimer.
Há também a controversa - e que infelizmente (a meu ver) torna-se comum não só no Brasil, mas no mundo - que é a teologia da prosperidade, onde a força do capitalismo ganha espaço em contraposição à conduta de cooperação e respeito que é condizente com o pensamento fundamental cristão. É a força econômica do capitalismo que ocasiona variantes no processo de interpretação para que a finalidade do indivíduo se sobreponha à necessidade da coletividade.
Percebendo as necessidades de um mundo moderno e a gigantesca possibilidade de interpretações para as complexidades modernas que surgem no texto bíblico observam-se que temas como desenvolvimento sustentável, sustentabilidade, racismo, ações transculturais, bullying, direitos das mulheres (lei Maria da Penha), Estatuto da Criança e do Adolescente, violência, justiça e suas distorções, guerra, crimes de guerra, política e posturas partidárias; todas estes e outros que eventualmente surjam tornam-se assuntos condizentes com os textos bíblicos e, portanto, assunto de abordagem para novas hermenêuticas.
Desse modo, trabalhar com educação nas comunidades de fé passa a ser uma caminhada feita a pequenos passos, cuidadosamente, sem ativismos e modelos pré-estabelecidos, pois, nesses moldes, observa-se a necessidade de reinterpretar e reviver a fé cristã e seus princípios fundamentais, dia após dia, passo a passo, até o dia em que Ele virá. Maranata, ora vem Senhor Jesus!
Thiago Barbosa
Li o artigo e gostei. Contudo, fico a me indagar sobre o limite hermenêutico envolvendo cultura e verdades bíblicas. Confesso que os pressupostos de Tilich são fascinantes, mas até quando aspectos relativos a cultura podem ditar normas hermenêuticas da bíblia? Afinal, a hermenêutica bíblica deve se fundamentada no momento histórico definido ao se conhecer os costumes, o contexto, entre outros elementos daquela época. Portanto, ao se realizar uma reinterpretação bíblica seguindo a cultura vigente, corre-se o risco de não levar em consideração o que de fato foi escrito e para quê foi escrito. Pode ser que seja exatamente essa a razão pela qual temos atualmente tantas teologias ao meu ver infundadas. A base hermenêutica não pode ser o nosso tempo, mas o tempo bíblico. Se não for assim cairemos em falácias hermenêuticas. Por outro lado, não posso deixar de concordar que a partir de uma hermenêutica firmada em elementos corretos, torna-se impossível não relaciona-la com os dias atuais. Se isso fosse assim, viveríamos uma intensa utopia. Concluindo, ao meu ver, temos que buscar uma hermenêutica imutável, porque a palavra de Deus não pode mudar, ao mesmo tempo em que buscamos aplicá-la a novos tempos.
ResponderExcluirGrande abraço!
Rodrigo Martins
Novamente obrigadíssimo pela participação. Ela sempre é de grande valia e muito bem vinda.
ResponderExcluirVc coloca pontos importantes:
1 - sobre o limite hermeneutico, ele deve se dar na não distorção de contextos históricos, culturais, sociais do povo em análise. Fazer distorção da "exegese" já é uma distorção para a hermenêutica e, nessa situação, levar a humanidade de quem escreve os textos bíblicos é imperativo e condição sine qua non.
2 - Tillich reforça essa abordagem em um livreto da Fonte Editorial "textos selecionados", onde ele evoca a eficaz contribuição da exegese crítica para a moldura histórica e cultural das hermeneuticas modernas.
3 - EM pleno século XXI, não é mais possível "brincarmos" de hermenêutica. É preciso seriedade nas pesquisas e rigor na interpretação, levando em conta, sempre, o homem detentor de tradição e história, incapaz de uma neutralidade genuína, que o o próprio interprete.
Mas é notório, a Biblia fala ainda nos dias de hoje, com força igual ao dos tempos antigos, respeitando as mudanças da cultura e de um homem que se apresenta "adulto".
Pensando em Dietrich Bonhoeffer, obrigado pela participação e um grande abraço.
Thiago Barbosa