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Thiago Barbosa
Cora Coralina
Estavam ali parados. Marido e mulher.
Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça
tímida, humilde, sofrida.
Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho,
e tudo que tinha dentro.
Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar
novo rancho e comprar suas pobrezinhas.
O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula,
entregou sem palavra.
A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou,
se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar
E não abriu a bolsa.
Qual dos dois ajudou mais?
Donde se infere que o homem ajuda sem participar
e a mulher participa sem ajudar.
Da mesma forma aquela sentença:
"A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar."
Pensando bem, não só a vara de pescar, também a linhada,
o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso
e ensinar a paciência do pescador.
Você faria isso, Leitor?
Antes que tudo isso se fizesse
o desvalido não morreria de fome?
Conclusão:
Na prática, a teoria é outra.
Thiago Barbosa
Pensando em amor, saudade e você me vêm três textos à mente, afinal, sem você por perto me falta inspiração e fôlego para digitar minhas eventuais e prosaicas “linhas virtuais”. A vida sem você é assim, prosaica, simplória, sem cor, sem vida, sem ar para se respirar, a vida, fora de seus braços não é vida, é HADES...
Suspiro, suspiros, tão profundos como os olhos e todos os seus dizeres silenciosos;
saudade é assim, é suspiro, é falta, é sofrer e sofreguidão. Há quem diga que amor é costume, pobre alma; mal sabe que o homem é um ser de costume, e que seu mais profundo desejo é libertar-se da eterna busca e acomodar-se. Aprouve ao "Supremo Bom" que meu descanso fosse em ti. Quantas vezes minha furiosa, imperiosa busca, iconoclasta, maldita, enlouquecida mente, achasse em ti refrifério. Não há refrigério nas palavras das escrituras, talvez as tenha na interpretação das escrituras. Amor é assim, transcendência de letra, de estudo; é ver a verdade na pessoa. Mas ver o amor em você é fácil, antes fossem todos como você, mas ainda bem que não são, senão, o mundo seria entediante, açucar em demasia, você é açucar, sorte não ser eu diabético...
O que a saudade não faz? Força descomunal, faz o crítico racionalista, frio, calculista, iconoclasta desvairado e desvalido, acomodar-se e suspirar por...você...
Ah...dista de mim segunda-feira...antes estivesse ao meu lado, mas a cada segundo se distancia mais...
Monte Castelo
Composição: Renato Russo (recortes do Apóstolo Paulo e de Camões).
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Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor, eu nada seria...
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É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade
O amor é bom, não quer o mal
Não sente inveja
Ou se envaidece...
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O amor é o fogo
Que arde sem se ver
É ferida que dói
E não se sente
É um contentamento
Descontente
É dor que desatina sem doer...
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Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor, eu nada seria...
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É um não querer
Mais que bem querer
É solitário andar
Por entre a gente
É um não contentar-se
De contente
É cuidar que se ganha
Em se perder...
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É um estar-se preso
Por vontade
É servir a quem vence
O vencedor
É um ter com quem nos mata
A lealdade
Tão contrário a si
É o mesmo amor...
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Estou acordado
E todos dormem, todos dormem
Todos dormem
Agora vejo em parte
Mas então veremos face a face
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade...
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Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor, eu nada seria...
Ah...tua presença é mais que costume, é vida. Quisera eu saber disso, por todo o sempre ao menos... Minha amada viajante...
Thiago Barbosa
Zé e o parto do construto humano em liberdade total.
Nascimento é trauma profundo, íntimo e inesquecível. Assim foi com todos nós e não foi diferente com Zé. Nascido de parto natural pôs-se logo no parto a romper com as amarras da submissão aos homens e rasgou útero a fora. Vulva, grandes e pequenos lábios, placenta e, por último cordão umbilical. Assim foi Zé, libertando as amarras que o seguravam ainda no mundo interior da barriga materna. Infelizmente o mundo apresenta mais resistência que o útero.
Fezes, urina e vômito, talvez sejam estas as mais puras e ideais produções humanas. Todos fazem, todos produziram. Com Zé nada de novo se fez, ele era em si fezes, urina e vômito. Mas Zé, libertador por natureza, um dia se viu às voltas das prisões de seus dejetos fisiológicos. Plástico, elásticos, poliuretano, espumas absortivas, fraldas, fraldas e mais fraldas. Prisão, carceragem fisiológica dos dejetos puramente produzidos pelo homem, por Zé. Esta foi sua primeira prisão.
O desenvolvimento é inevitável. Crescemos, progredimos, tornamo-nos homens adultos, maduros, socialmente concebidos. Mas, até o ápice há as reprimendas oriundas da educação formal. Escolas são prisões do senso libertário do homem, Zé é novamente encarcerado. Sua urina e fezes continuavam sendo produzidas. Seu mais genuíno construto, fezes e urina, Zé reprimia ao ouvir os gritos vociferados das professoras. Controle-se Zé! Não é hora de banheiro! Como assim não é hora de banheiro? Minha produção, única produção genuinamente minha e, não é hora? Zé calou-se por anos a fio.
Décadas passadas. Zé ouvindo reprimendas quanto ao seu mais genuíno produto. A vontade de usar o banheiro é gigantesca e, o aperto, é uma sensação que castra até mesmo os pensamentos e possibilidades mais banais. Como produzir algo na escola quando, meu único produto genuíno é enxovalhado e maldito pelos próprios manufatureiros do conhecimento humano. Anos no ensino, anos nas escolas, vários, quase incontáveis professores e, Zé, o produtor de urina e fezes, amordaçado pelo sistema.
A faculdade chega, é libertária dos grilhões impostos por anos a fio. Zé, nosso personagem mítico-literário, entrega-se aos arroubos do conhecimento. Anos de conteúdos onde, enfim, a liberdade e a autonomia imperam de forma plena em fúria e prazer. Quem nunca experimentou do magistral sabor que provém da autonomia humana, da sua própria capacidade de criar e, principalmente, de não se envergonhar do construto de seu ventre, não sabe a psicose que invade a mente de Zé. Envergonhar-se do construto humano é temer um filho gestado aos tropeços. Esse construto torna-se motivação mor da própria existência humana, e é assim, nessa overdose cognitiva de possibilidades para as experiências libertárias das ações humanas que Zé percebe ser abduzido por seus pensamentos. Ao fundo ele ouve como que um sussurro inebriante. É a voz de seu professor, aquele mais querido, mais libertador, dizendo com uma força harmoniosa, palavras das quais se é impossível fugir. Liberta-se Zé! Desprenda-se, lembra-te de tudo que sempre lhe arrepiou, constrangeu, exortou, tolheu, aleijou! Zé, esta é a sua chance, talvez única!
Zé, abduzido pelos sussurros inebriantes de seu amado mestre, se vê em uma viagem psicodélica, repleta e plena em luzes estroboscópicas e intermitentes. Chegando à sua mais terna infância, lembrou-se de como se orgulhava de seus construtos fisiológicos, via-se admirando embasbacadamente suas fezes e urina. Sem irmãos, sem amigos, sem pais, sua obra reprimida pelo plástico e espuma de absorção das fraldas infantis. Nas escolas pelas quais passou percebeu sempre um descaso de suas professoras. Posso ir ao banheiro? Não! Nunca! Não sabe se controlar?! Zé, reprimido, de nada se orgulhava, a não ser de seus dejetos. Ao fundo o sussurro em sua mente tornava-se a cada instante mais passional. Liberta-se Zé!
Como quem se recupera de um coma duradouro como a própria vida, Zé, agora liberto, abre vagarosamente os olhos. As vistas, ainda embaçadas do longo período em transe; Zé recupera-se lentamente. Um estampido alto e isolado, iniciado na ala norte da sala, chama sua atenção. Logo não se trata de um estampido isolado, mas sim de vários estampidos que, copiosamente se unem em uma salva de palmas. Assobios, gritos de vivas e mais aplausos, estão todos, professor e alunos, saldando o mais novo liberto da sala. Zé respira fundo e sente o cheiro ocre-doce que emana de suas calças, sente o calor molhado em seu jeans e a sensação tátil pastosa em sua nádega. Aliviado, Zé esboça um sorriso maroto, reprimido por toda a sua vida, e quem sabe pelas vidas passadas também. Seu professor, o mesmo que sussurrava sua sentença de libertação em seu transe, põe-se de pé sobre a cadeira e a plenos pulmões exalta gritos de bravos e aleluias. No fim de seus gritos, com alunos atônitos a se entreolharem, o mestre brada com todos: “Zé, meu querido Zé, orgulhe-se! Isto que trazes contigo é teu construto, produto autêntico de tuas entranhas e de tuas possibilidades. Hoje queridos, vocês aprenderam, com magnífica potencialidade, o verdadeiro conceito de construto humano, autonomia e liberdade. Estão prontíssimos para nossa próxima lição, tão importante e libertadora como esta que presenciaram agora, veremos sobre as forças titânicas da RESPONSABILIDADE.
Thiago Barbosa
Lutero - quem diria! - deu o ponta-pé inicial colocando a própria religião em maus lençóis. Com a Reforma, inaugura-se, quase efetivamente, a era da racionalidade, abrindo caminhos tenebrosos em direção à crítica fomentada (graças aos orientais árabes), principalmente, no século XIX pelos chamados “Cavaleiros do Apocalipse”. Daí para frente, tudo o que diz respeitos às coisas sagradas, a transcendência, ao metafísico, tudo o que diz respeito ao campo religioso, se torna objeto de questionamentos incisivos e perturbadores. Isso ameaçou a experiência religiosa confiscando seu lugar no mundo sensível e palpável. A ciência insurge juntamente com o desenvolvimento da tecnologia e se torna a mais adorada deusa da (pós?) modernidade. Parece que nenhum discurso religioso subsistirá a essa força realista e racionalista da razão sobrepõe à fé, e ela tende a desaparecer.
Mas talvez haja esperança. E, se tratando de esperança, recomendaria a leitura de um livrinho muito interessante escrito por Pedro César kemp Gonçalves, chamado Reflexões sobre a religião como utopia e esperança. Do autor, quase nada descobri, pelo menos ainda não, mas com certeza essas reflexões se fazem extremamente válidas em nossos dias onde vemos um descarte do “homo religiosus”. A religiosidade parece ter cheiro de coisa velha, arcaica, primitiva, atrasada. No entanto, Gonçalves busca manter vivo aquilo que, segundo ele, é parte constitutiva do ser.
Na primeira parte do livro, trata do fenômeno religioso. Procura mostrar, através de uma perspectiva histórico-antropológica, ser a religião, algo que surge atrelada às descobertas do próprio homem. Em sua evolução no decurso da história, é ela, um sentimento que emana das necessidades mais profundas da vida: a subsistência, o sentido da vida, a morte, questões existenciais. Acompanha, portanto, o desejo do homem pela transcendência.
“Não se entende a religião senão profundamente relacionada com o agir e existir
daquele que reza, inclina-se, transforma objetos em símbolos e constrói templos”(GONÇALVES-1985)
Em sequência, procura identificar a religião como construção imaginária. Sua perspectiva é antropológica, principalmente, quando configura a experiência religiosa como produção do próprio homem numa projeção, numa dimensão “invisível e misteriosa”. A imaginação é a palavra chave nessa parte do livro, mostrando que “diferentemente do animal, que possui uma vida interior idêntica a exterior, o homem constitui-se de uma vida interior diversa do exterior”. Aqui também, o autor passa a responder à pergunta “Porque os homens fazem religião?”. Uma pergunta com várias respostas que, segundo o autor, são respondidas sem a compreensão do que seja ou do que signifique a religião para o homem. Apresenta os questionamentos de Comte, Marx, Feuerbach e Freud, os grandes questionadores da religiosidade humana. Assim responde as conhecidas rajadas de ceticismo dessas mentes brilhantes:
“Apesar de estar intimamente ligada às expressões da imaginação, o sentimento religioso não desaparece com o desvendar das coisas inexplicáveis feito pela ciência. Nem mesmo com o mundo mais controlável pela tecnologia, pois o homem ainda sente a necessidade de utopias. Necessita de algo que o faça olhar sempre para frente, que faça com que sua vida mereça ser vivida, que responda às indagações existenciais e corresponda aos desejos.” (GONÇALVES-1985).
No terceiro capítulo do livro, nos é apresentado a religião como esperança. É a confirmação do homo sperans e sua “abertura para o absoluto”, para a “transcendência”, o que distingue seu projeto imaginário de qualquer outro, pois é nela que se vê “ a marca que ilumina a realidade do ser humano: a necessidade de que a vida faça sentido, e plena realização dos projetos no futuro.” Parece que encarar a vida pressupondo um futuro realizável, ainda que imaginariamente, demonstra ser uma ferramenta viável para o homem religioso. Ele “molda sua vida para o que há de vir”, para aquilo que espera ser, um dia, num futuro, fomentando a vontade de progredir e de vencer, de chorar e depois sorrir, pois os olhos estão fitos além.
"Portanto, ter esperança é um estado de ser. É pois, algo que acompanha todo o crescimento da vida do homem, orientando-a e dando sempre um vigor novo para o agir. Assim, não é apenas uma diretriz ou uma orientação, mas também princípio, causa de ação. O homo sperans faz, age para ver o mais depressa possível o ‘ainda- não-existente’ tornar-se realidade.”(GONÇALVES-1985)
Para Gonçalves, o profeta é a figura que “profetiza a esperança”. Não num sentido de alienação, mas de um “exemplo vivo do homem sperans”, pois a partir de suas leituras da real condição da sociedade, apregoa um novo mundo, projetando a esperança num futuro em oposição ao que se vê. Não os confundamos com “adivinhos” ou “videntes”, não são mágicos. São arquitetos da imaginação e sua luta é contra a desesperança, levantando sua voz em favor dos que querem um mundo diferente, um mundo melhor.
“O profeta é aquele que reaviva nos homens a esperança. Ele não está a anunciar uma mensagem qualquer, alienada do aqui e agora. Não prevê o futuro, mas parte da história presente. Vê, compreende e, denunciando o mundo contraditório, anuncia a sua mensagem de esperança num mundo melhor.” (GONÇALVES-1985)
Penso ser essa uma perspectiva muito saudável, agradável e favorável à manutenção da fé. Um olhar onde não se afirma ontologicamente a verdade, nem se pretende convencer de uma realidade transcendente, tão pouco, transformar um discurso místico em ferramentas político-religiosas de manipulação (ideal). È saudável por admitir a necessidade inerente ao homem de desejar o mistério, o infinito, o mágico. Simplesmente uma satisfação de desejos, respostas terapêuticas ao desespero, ópio na medida do alívio da dor. Esperança diante do “pavor dos finitos”: a morte.
Calma, querido Gonçalves! Não penso que a luta desses pensadores fosse diretamente contra esse “fenômeno tipicamente humano”. Minhas suspeitas estão postas na questão de uma insurgência desses senhores (Marx e companhia...) contra ideologias-dominadoras-de-mentes-ingênuas, mentes místicas, crentes. Essas ideologias, que por séculos, ofereceram “pratos feitos” de verdades inquestionáveis a fim de dominar o imaginário e o corpo das gentes, são o principal alvo desses tirambáços.
Quer Homo Religiosus maior que o Homo Brasilis?
Jonathan
*GONÇALVES, Pedro César Kemp. Reflexões sobre a religião como utopia e esperança. São Paulo: Ed. Paulinas, 1985.