Lutero - quem diria! - deu o ponta-pé inicial colocando a própria religião em maus lençóis. Com a Reforma, inaugura-se, quase efetivamente, a era da racionalidade, abrindo caminhos tenebrosos em direção à crítica fomentada (graças aos orientais árabes), principalmente, no século XIX pelos chamados “Cavaleiros do Apocalipse”. Daí para frente, tudo o que diz respeitos às coisas sagradas, a transcendência, ao metafísico, tudo o que diz respeito ao campo religioso, se torna objeto de questionamentos incisivos e perturbadores. Isso ameaçou a experiência religiosa confiscando seu lugar no mundo sensível e palpável. A ciência insurge juntamente com o desenvolvimento da tecnologia e se torna a mais adorada deusa da (pós?) modernidade. Parece que nenhum discurso religioso subsistirá a essa força realista e racionalista da razão sobrepõe à fé, e ela tende a desaparecer.
Mas talvez haja esperança. E, se tratando de esperança, recomendaria a leitura de um livrinho muito interessante escrito por Pedro César kemp Gonçalves, chamado Reflexões sobre a religião como utopia e esperança. Do autor, quase nada descobri, pelo menos ainda não, mas com certeza essas reflexões se fazem extremamente válidas em nossos dias onde vemos um descarte do “homo religiosus”. A religiosidade parece ter cheiro de coisa velha, arcaica, primitiva, atrasada. No entanto, Gonçalves busca manter vivo aquilo que, segundo ele, é parte constitutiva do ser.
Na primeira parte do livro, trata do fenômeno religioso. Procura mostrar, através de uma perspectiva histórico-antropológica, ser a religião, algo que surge atrelada às descobertas do próprio homem. Em sua evolução no decurso da história, é ela, um sentimento que emana das necessidades mais profundas da vida: a subsistência, o sentido da vida, a morte, questões existenciais. Acompanha, portanto, o desejo do homem pela transcendência.
“Não se entende a religião senão profundamente relacionada com o agir e existir
daquele que reza, inclina-se, transforma objetos em símbolos e constrói templos”(GONÇALVES-1985)
Em sequência, procura identificar a religião como construção imaginária. Sua perspectiva é antropológica, principalmente, quando configura a experiência religiosa como produção do próprio homem numa projeção, numa dimensão “invisível e misteriosa”. A imaginação é a palavra chave nessa parte do livro, mostrando que “diferentemente do animal, que possui uma vida interior idêntica a exterior, o homem constitui-se de uma vida interior diversa do exterior”. Aqui também, o autor passa a responder à pergunta “Porque os homens fazem religião?”. Uma pergunta com várias respostas que, segundo o autor, são respondidas sem a compreensão do que seja ou do que signifique a religião para o homem. Apresenta os questionamentos de Comte, Marx, Feuerbach e Freud, os grandes questionadores da religiosidade humana. Assim responde as conhecidas rajadas de ceticismo dessas mentes brilhantes:
“Apesar de estar intimamente ligada às expressões da imaginação, o sentimento religioso não desaparece com o desvendar das coisas inexplicáveis feito pela ciência. Nem mesmo com o mundo mais controlável pela tecnologia, pois o homem ainda sente a necessidade de utopias. Necessita de algo que o faça olhar sempre para frente, que faça com que sua vida mereça ser vivida, que responda às indagações existenciais e corresponda aos desejos.” (GONÇALVES-1985).
No terceiro capítulo do livro, nos é apresentado a religião como esperança. É a confirmação do homo sperans e sua “abertura para o absoluto”, para a “transcendência”, o que distingue seu projeto imaginário de qualquer outro, pois é nela que se vê “ a marca que ilumina a realidade do ser humano: a necessidade de que a vida faça sentido, e plena realização dos projetos no futuro.” Parece que encarar a vida pressupondo um futuro realizável, ainda que imaginariamente, demonstra ser uma ferramenta viável para o homem religioso. Ele “molda sua vida para o que há de vir”, para aquilo que espera ser, um dia, num futuro, fomentando a vontade de progredir e de vencer, de chorar e depois sorrir, pois os olhos estão fitos além.
"Portanto, ter esperança é um estado de ser. É pois, algo que acompanha todo o crescimento da vida do homem, orientando-a e dando sempre um vigor novo para o agir. Assim, não é apenas uma diretriz ou uma orientação, mas também princípio, causa de ação. O homo sperans faz, age para ver o mais depressa possível o ‘ainda- não-existente’ tornar-se realidade.”(GONÇALVES-1985)
Para Gonçalves, o profeta é a figura que “profetiza a esperança”. Não num sentido de alienação, mas de um “exemplo vivo do homem sperans”, pois a partir de suas leituras da real condição da sociedade, apregoa um novo mundo, projetando a esperança num futuro em oposição ao que se vê. Não os confundamos com “adivinhos” ou “videntes”, não são mágicos. São arquitetos da imaginação e sua luta é contra a desesperança, levantando sua voz em favor dos que querem um mundo diferente, um mundo melhor.
“O profeta é aquele que reaviva nos homens a esperança. Ele não está a anunciar uma mensagem qualquer, alienada do aqui e agora. Não prevê o futuro, mas parte da história presente. Vê, compreende e, denunciando o mundo contraditório, anuncia a sua mensagem de esperança num mundo melhor.” (GONÇALVES-1985)
Penso ser essa uma perspectiva muito saudável, agradável e favorável à manutenção da fé. Um olhar onde não se afirma ontologicamente a verdade, nem se pretende convencer de uma realidade transcendente, tão pouco, transformar um discurso místico em ferramentas político-religiosas de manipulação (ideal). È saudável por admitir a necessidade inerente ao homem de desejar o mistério, o infinito, o mágico. Simplesmente uma satisfação de desejos, respostas terapêuticas ao desespero, ópio na medida do alívio da dor. Esperança diante do “pavor dos finitos”: a morte.
Calma, querido Gonçalves! Não penso que a luta desses pensadores fosse diretamente contra esse “fenômeno tipicamente humano”. Minhas suspeitas estão postas na questão de uma insurgência desses senhores (Marx e companhia...) contra ideologias-dominadoras-de-mentes-ingênuas, mentes místicas, crentes. Essas ideologias, que por séculos, ofereceram “pratos feitos” de verdades inquestionáveis a fim de dominar o imaginário e o corpo das gentes, são o principal alvo desses tirambáços.
Quer Homo Religiosus maior que o Homo Brasilis?
Jonathan
*GONÇALVES, Pedro César Kemp. Reflexões sobre a religião como utopia e esperança. São Paulo: Ed. Paulinas, 1985.
Nenhum comentário:
Postar um comentário