A arte de pensar livremente

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Aqui somos pretensiosos escribas. Nesses pergaminhos virtuais jazem o sangue, o suor e as lágrimas dos que se propõem a pensar com autonomia. (TeHILAT HAKeMAH YIRe'aT YHWH) prov 9,10a

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

tentando ser teólogo e preparando para o Cristo de Harnack...

OS EVANGELHOS E AS HISTÓRIAS DE JESUS
LÉON-DUFOUR, Xavier – Os Evangelhos e a história de Jesus / trad. Pe. Ângelo José Busnardo, Edições Paulinas, São Paulo, 1972. 543 pág.

Capítulo XII – A PESQUISA SOBRE JESUS DE NAZARÉ

1 – Crítica histórica das tradições

O problema da história Jesus é antigo, mas a maneira de apresentá-lo se renova continuamente, em função do avanço dos métodos científicos e do atraso da atitude religiosa. Desde que, a partir do fim do século XVIII, o espírito crítico pôs em discussão o valor histórico do testemunho dos evangelistas e afirmou que os evangelhos não trazem exatamente a história de Jesus, surgiram muitas obras que mostravam a veracidade dos evangelhos. Rudof Bultmann aponta que deveria ser a fé o valor compensatório da falha da historicidade de Jesus. Para Xavier Léon-Dufour, sua obra não pretende demonstrar o caráter ou a qualidade histórica de cada uma das narrações ou palavras evangélicas, sua finalidade é apreciar a qualidade histórica dos documentos tomados em conjunto, ou como coleções amalgamadas, utilizando-se do método da convergência para ter certeza sobre o todo, antes de se ter chegado a uma certeza sobre cada um dos detalhes.

No início do século XX, certos apologistas pensaram encontrar um meio rápido que permitiria atingir os relatos bíblicos tais quais eles se realizaram. “Para responder a esta questão não basta considerar os documentos apenas do ponto de vista externo, é necessário fazer um juízo de crítica interna, baseando estritamente na crítica literária dos documentos”. Este julgamento pode ser formulado em duas etapas: historicidade de cada evangelho, a partir de seu gênero literário e a historicidade da tradição evangélica, a partir das unidades preexistentes. Os critérios de discernimento que guiam o historiador são numerosos e variados, apesar de que a crítica interna ocupe sempre o primeiro lugar, não devesse por isso desprezar a contribuição da crítica externa. (p.333)

Segundo a tradição, Marcos e Lucas não são testemunhas diretas de Jesus, e o relacionamento com Pedro e Paulo não é suficiente para garantir a literalidade a seus testemunhos. João se apresenta como uma testemunha, mas sua obra é posterior e não se enquadra a nenhuma produção textual como gênero histórico, teológico ou místico.

Para Strauss, por exemplo, é mítico todo acontecimento que os evangelistas relacionam com a profecia da Escritura; ora a história profana demonstra a exatidão de certos detalhes que os evangelhos relatam em determinado contexto escriturístico: por exemplo, o costume de dividir entre si os indumentos dos crucificados. Mas estes elementos da crítica externa (aquilo que documentos externos dizem a respeito do texto analisado), apesar de muito úteis nem sempre encontram aplicação e mesmo não bastam para revelar aquilo que o próprio texto suscita, tornam-se necessário apelar para o método da critica interna (aquilo que o próprio documento diz), tais como presença de testemunhas nos eventos, mencionados para certificar a narração. De fato, embora o apelo às testemunhas tenha um valor real para sacudir a desconfiança sistemática que o historiador nutre em relação aos textos, não é suficiente para apreciar o próprio fato. Um exemplo podem ser as frases – dadas por testemunhos sob suspeita de que foram influenciadas pela cristandade nascente - são atestadas pelas outras sentenças que a crítica não tem motivo para por em dúvida, e onde Jesus se identifica com o pastor em oposição aos discípulos, chamados “pequeno rebanho”: a frase pode, portanto ser considerada substancialmente autêntica. (p.337)

Segundo a doutrina da inspiração, as palavras relatadas nos evangelhos provêm de Jesus, o Senhor. Isso, de maneira alguma, significa que estas palavras tenham sido todas enunciadas por Jesus durante sua vida terrestre na mesma forma em que são relatadas. O historiador quando se interroga a respeito do sentido original da palavra de Jesus, deve, portanto, levar em conta a parte de verdade que está em cada uma das recensões. No desenvolvimento da tradição, freqüentemente se produziu aquilo que podemos chamar de fenômeno de assimilação. Nas parábolas, algumas sentenças absorveram outras tão bem que o historiador tem dificuldade em descobrir os sucessivos acréscimos, não apenas de um evangelho para o outro, mas também no interior de cada uma das recensões. (p.342)

“Enfim, no tempo dos pais da igreja, a interpretação se separa do sentido próprio da parábola, e, aos poucos, se torna “intemporal”. Sucede, às vezes, que o exercício da crítica seja de grande importância para penetrar com exatidão o pensamento de Jesus”. (p.345) Nos é permitido notar a importância da crítica para a interpretação teológica da mensagem de Jesus, ela apresenta-se de maneira sugestiva sobre como a igreja procurava formular do melhor modo possível a palavra de Jesus. Busca-se observar ainda dois pontos primordiais: as tendências observadas na comunidade apostólica e os gêneros literários das diferentes recensões. (p.348-349)

A existência de uma intenção teológica subjacente à narração pode, sem dúvida, influir na apresentação dos fatos. É, portanto, evidente que a ausência deste elemento permite imediatamente atribuir uma grande probabilidade histórica a um episódio. Pelo contrário, ordinariamente a teologia penetra a narração histórica a ponto de, às vezes, parecer ter-lhe dado origem. A historicidade da tradição precisaria ser analisada assim em cada narração. Um estudo recente mostra que não podemos satisfazer-nos com uma origem comunitária: com efeito, não descobrimos nem preocupação apologética, nem interesse em edificar, nem desejo de explicar um dado primitivo essencial, nem síntese dramática condensando as tentações que Jesus teve durante seu ministério. (p.357)

As narrações da infância merecem um desenvolvimento particular, porque foram freqüentemente maltratadas por uma crítica histórica exagerada: ou inversamente, não se lhes considerou o verdadeiro gênero literário. Na tradição evangélica, estas narrações ocupam uma posição bem diferente daquela que tem as narrações da vida pública. O anúncio do “querigma” não tem interesse direto sobre a infância de Jesus, já que somente Mateus e Lucas apresentam estas narrações, dever-se-á concluir que não são históricas? Seria tão arbitrário quanto rejeitar como lendária esta ou aquela narração de que possuímos apenas uma recensão. Poderemos, com certos críticos, caracterizar estas narrações qualificando-as de “midrashim”? (p.358-359)

Com efeito, freqüentemente, o historiador sucumbe perante uma ou outra destas tentações opostas: ou uma cronologia excessivamente detalhada, ou uma desconfiança sistemática em relação a qualquer determinação temporal. O evangelho de João apresenta uma distribuição da existência de Jesus completamente diferente da dos Sinóticos, pelo menos quanto àquilo que concerne à vida pública de Jesus, anterior à semana da Paixão. (P.378)
Outro dado importante concerne às passagens de Jesus por Jerusalém. Segundo os Sinóticos, Jesus teria parado na capital somente no fim de sua vida, durante a última semana: dão, entretanto, a entender que Jesus deve ter passado por aí diversas vezes e mesmo pregado. (p.379)

O evangelho de Lucas também se distingue claramente dos dois primeiros a respeito do desenvolvimento da vida pública na Galiléia. Ele também é interessante por causa da sua real originalidade em relação a Mateus e Marcos. (p.380)

Acredita-se que Mateus está mais próximo da tradição original e indica de maneira mais provável, a respeito deste ponto, a economia histórica da vida de Jesus. Parece que a distribuição de Mateus esteja mais próxima da seqüência primitiva. (p.381) A ruptura atestada pelos três primeiros evangelhos, é um fato que o historiador pode tentar interpretar. Também nisso, Marcos se mostra mais fiel à tradição primitiva do que Mateus. (p.381)

2 – “E vós, quem dizeis que eu sou?”

Apesar de que se possam determinar dois períodos sucessivos na pregação de Jesus, isso de maneira alguma nos autoriza a ver, nesta divisão, duas etapas diferentes na consciência de Jesus; ademais, a separação exata das palavras e dos fatos é extremamente hipotética. O esboço que Léon-Dufour busca fazer, se baseia numa opção a respeito da qual nem todos os historiadores se manifestam: o fato da consciência messiânica de Jesus e a maneira pela qual pode ser reconhecida pelo historiador. Já numerosos historiadores protestantes que, apesar de muito religiosos, são de uma tendência radical afirmando que nem mesmo uma palavra de Jesus o apresenta como um Messias designatus. (p. 389-391)

Não há, a respeito de Jesus de Nazaré, nenhuma síntese revelada que o historiador possa simplesmente usar após tê-la purificado de seus adendos. Mesmo mediante esta realidade prismática dos evangelhos podemos ainda reconhecer caracteres básicos formadores da essência de Jesus.

Jesus nasceu num mundo Judeu que, consciente de sua eleição passada, acredita no futuro glorioso que lhe foi prometido. Apresenta-se como um rabino, à maneira dos escribas, ensina nas sinagogas, reúne discípulos, discute nos moldes da escola. Este homem mostra-se incluso nas perspectivas sócio-culturais da época. Tornando-se arauto do reino de Deus, Jesus devia ser facilmente escutado por seus contemporâneos, senão exatamente compreendido. Se bem que a proclamação inaugural de Jesus possa parecer confusa quanto à relação existente entre o presente e o futuro do reinado, o historiador, entretanto, pode afirmar que Jesus proclamou claramente o reino de Deus presente aos olhos dos contemporâneos, e isto, pelo menos, por duas vezes.

O autor anuncia que Lucas exprime muito bem esta situação colocando no início do ministério a visita de Jesus a Nazaré. Marcos, em seu evangelho, sublinha esta atitude de Jesus de maneira sistemática. Este, durante sua vida terrestre, não podia dizer claramente quem realmente era antes de ter mostrado, através da morte, a significação de seus títulos. O messianismo de Jesus ultrapassa por todos os lados a idéia que Israel se fazia do Messias: não se esperava do Filho de Deus como tal, bem como não se pensava na morte do Messias. Sem dúvida, de acordo com as promessas divinas, Jesus é o libertador de Israel e dirige a história da salvação para seu fim; mas cumpre deste modo, o papel do Messias porque, sendo Filho de Deus, passou pela morte. (p.416-447)

“Jesus era judeu e permaneceu judeu até seu último suspiro” (KLAUSNER, 1953); esta afirmação do historiador israelita J. Klausner é exata. Vela apenas o segredo da consciência filial de Jesus e, por isso, como risco de induzir a erros, ao menos sob a perspectiva do autor. Porque este judeu não é um judeu como os outros, é o Filho do Pai celeste. O comportamento de Jesus não deriva apenas da Lei, que faz conhecer a vontade de Deus, mas também e antes de tudo do contato pessoal e imediato que conserva com Deus seu Pai.

O historiador constata que Deus deu uma resposta à questão suscitada pela vida e morte de Jesus de Nazaré. Mas, só recebe esta resposta através de acontecimentos contingentes por natureza; o crente a recebe, formulada através dos mesmos acontecimentos, mas também pronunciada diretamente por Deus no fundo de seu coração, em que ela assume o caráter absoluto e divino daquele que a pronuncia.

Para Adolf Von Harnack, em “A História do Dogma”, a “problemática” do Jesus histórico se dá quando a filosofia grega se presta a ser detentora da interpretação dos conceitos do Jesus de Nazaré, hebreu por primazia e alheio às questões filosóficas pós-socráticas. Não observamos a autenticidade de Jesus humanizado, em seu autêntico contexto sócio-cultural, mas observamos sempre a cristologia sob prisma do helenismo. Sobre as lendas do Reino de Deus, a tradição das crônicas de São Marcos é rica quando comparada às referências de Jerusalém, porém são pobres quando referenciadas com escritos da Galiléia. Isso não facilita as exposições que apontam serem estas derivadas originalmente dos primeiros discípulos. A questão aponta a ocorrência à posteriores tradições para a harmonização dos três primeiros evangelhos com a data que aponta o material como uma peculiar referência de São Mateus e são Lucas sendo uma variação das fontes “Q” e as experiências apontadas em São Marcos. Os relatos sobre a infância de Jesus contêm a genealogia e a concepção virginal tendo correlação com as lendas de Magi. (HARNACK, 1911)

O choque entre os pensamentos de Harnack e seu “Jesus histórico” é contraposta por Loisy, já que este Cristo “Harnackiano” tornar-se-ia nada mais que um arauto anunciante da iminente catástrofe final (p.506). Podemos nos referir a “Ele” como tendo propósitos múltiplos. Um é cristológico, outro apologético, ainda catequético, e mais evangelístico. (RIBEIRO, 2000)

O livro de Xavier Léon-Dufour assume a necessidade de sérios estudos a respeito dos textos que formam o cânon, em especial os evangelhos. Assumir a responsabilidade quanto a analise da crítica interna, em relação à própria essência dos dizeres e ensinamentos que tais textos apresentam em sua tradição cristã, que perfazem toda a formação da sociedade ocidental, bem como a necessidade de corroborar, averiguar e testificar tais escritos formadores da tradição cristã aos estudos da crítica externa embasados na ciência moderna e pesquisas dos meios antropológicos, sociológicos, historiográficos e arqueológicos que perfazem a reconstrução da veracidade textual bíblica, principalmente após a necessidade de se exaltar as premissas comprovadamente históricas para uma eficaz apologética cristã.

O autor se propõe a investigar principalmente com a utilização dos próprios textos do cânon, confrontando e emoldurando os evangelhos de forma correlata e indivisível. A multiplicidade de relatos que eventualmente aparecem perfazem a riqueza com que o cânon se promove em resposta à comunidades alocadas em seu tempo e espaço e que os evangelistas se propõem a sistematizar a nascente e crescente fé cristã.

A consulta à obra “OS EVANGELHOS E AS HISTÓRIAS DE JESUS – Xavier Léon-Dufour s.j. Edições Paulinas” se deu pela intrigante problemática existente sobre o assunto “Jesus histórico”. Um tema por vezes maldito entre os próprios pesquisadores, pois tais assumem as lentes das propostas do concílio de Nicéia para si e se fecham para outras possibilidades de estudos que se apresentam tomando-as como heréticas. Notar a possibilidade de aproximar a crítica histórica externa da possibilidade de manutenção da tradição cristã é ao mesmo tempo paradoxal – já que por vezes a crítica histórica abala os alicerces mais fragilizados da tradição – como também torna emergencial tal análise, na intenção de depurar o sustentáculo verdadeiro da ortodoxia cristã.

O método teórico em “Os evangelhos e a história de Jesus” parece alocar-se na “NOVA TEOLOGIA BÍBLICA”, pela utilização de citações do Antigo Testamento no Novo Testamento. B.S.Childs vê a revelação mútua entre os testamentos, para ele a “NOVA TEOLOGIA BÍBLICA” deve basear-se no contexto do cânon da Igreja Cristã, sendo, portanto, uma disciplina teológica cristã. Com Childs o método teológico do Cânon bíblico foi reincorporado de uma nova forma à teologia bíblica. (Hasel, 1987)


Thiago Barbosa

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