A arte de pensar livremente

A arte de pensar livremente
Aqui somos pretensiosos escribas. Nesses pergaminhos virtuais jazem o sangue, o suor e as lágrimas dos que se propõem a pensar com autonomia. (TeHILAT HAKeMAH YIRe'aT YHWH) prov 9,10a

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

"...por cabeça e não por cauda..." - o líder que faz.

Em um mundo onde a realidade das buscas pelo capital tornou-se uma constante realidade, onde essas aspirações por cargos e posições assumem novos padrões formadores de uma nova realidade moral e ética, é compreensível que o destaque frente a um grupo vigente possa apresentar-se como sinônimo de competência e sucesso no mundo das negociações que formam o capitalismo.

Em suma, a figura do líder é cognoscível em grande parte dos grupos orgânicos sociais que perfazem a estrutura viva de nosso planeta. Analisando o grupamento dos mamíferos, nota-se uma evidente necessidade da figura de líder nos processos migratórios das grandes manadas. Tais espécies, endêmicas das savanas africanas, como os gnus, zebras ou búfalos, apresentam hábitos anuais de migração geográfica, onde o grupo busca melhor qualidade de alimentação ou ambientação para o período reprodutivo. Há a clara necessidade de uma figura que lidere o grupo com maior conhecimento, adquirido por outros processos de migrações anteriores, e que leve o grupo com relativa segurança e conforto até as regiões de melhor qualidade na alimentação e/ou reprodução. Essa é uma figura de líder que não detém a hegemonia do grupo, mas é observado um conhecimento prévio do que há de vir (caminhos preferenciais, pontos de descanso, locais seguros para dessedentar-se).

Em outros grupos animais é possível observar ainda a figura centralizadora do “macho alfa”. Esse tipo de liderança baseada na força e manutenção coercitiva dos níveis hierárquicos é notado em grupos de primatas superiores como as espécies de chimpanzés ou gorilas, ou ainda liderando os grupos dos grandes felinos das savanas africanas. Os leões assumem a clara figura centralizadora e detentora de hegemonia hierárquica frente ao restante do grupo, formado por fêmeas e filhotes em fase de lactação. Ao notar o crescimento dos filhotes machos, o líder, “macho alfa”, os expulsam do grupo, no intuito de impedir sua ascensão. Tal fato impede que sua hegemonia frente ao grupo seja questionada, mantendo o líder no controle até que um macho expulso, “macho beta”, volte e conquiste o lugar do líder dominante perante um enfrentamento físico. Essa visão de líder centralizador e detentor de poderio coercitivo, característico no grupo de leões, gorilas ou chimpanzés, podem ser observados ainda no grupo dos humanos. A liderança, como caracterizada acima, ainda é notadamente apresentada nas relações sociais entre seres humanos, seja em ambientes de convivência familiar, pública, ou ainda nas relações de trabalho.

A figura do líder comumente é identificada como aquele que se propõe a manter o poder, normalmente conquistado com uso de força. Maquiavel, em O príncipe, propõe dois fatores primordiais na manutenção de um Estado conquistado: a primeira é a extinção de toda a linhagem do antigo príncipe (detentor do poder sobre o grupo), e a segunda é minimizar as mudanças nas leis, regras e/ou impostos, no intuito de que o novo poder seja estabelecido com maior eficácia. (Machiavelli, 1469-1527)

Imagens de líderes como déspotas não são incomuns na literatura histórica. “Da crueldade e da piedade, se é melhor ser amado que temido ou o contrário”, são pensamentos que habitam mentes de detentores de poder por todo o desenvolvimento da humanidade, mas ultimamente, estudos mostram que a efetividade da liderança se dá não por coerção e autoritarismo, mas na dispensa de confiança entre grupo e líder e vice-versa. O Estado Democrático de Direito, bem como as relações de respeito, bem-estar, moralidade e ética, fazem com que pensamentos medievais sejam restringidos aos relatos históricos. Mas será assim mesmo?

James C. Hunter, em como se tornar um líder servidor - os princípios de liderança de o monge e o executivo, define liderança como sendo a habilidade de influenciar pessoas para trabalharem entusiasticamente visando atingir objetivos comuns. Nessa definição, percebe-se uma clara conotação empresarial, porém, em uma perspectiva mais abrangente podemos apontar que liderança restringe-se a uma habilidade de influenciar pessoas. As conotações de trabalho e objetivos em comum são secundárias, afinal, o líder é um inspirador de confiança, um alicerce da ética e da moral, da consciência individual e coletiva, onde o liderado sente-se apaziguado sob suas palavras ou apontamentos. Nesse contexto o líder se faz pela confiança que inspira em seus liderados.

Outras verificações interessantes a serem frisadas são as formas como o líder age sobre o grupo que lidera. Pensar no dualismo presente entre o poder e a autoridade permite-nos formar uma idéia da ação do líder. O poder é a capacidade de obrigar por força ou por posição hierárquica que outra pessoa faça o que lhe é pedido. Já a autoridade relaciona-se intrinsecamente ao caráter e à relação de confiança entre líder e liderado. Enquanto o uso do poder é coercitivo, autoritário, impositivo e principalmente instável (pois depende da posição hierárquica ocupada pelo líder), a autoridade emana da confiança relacional entre líder e grupo liderado, independendo das posições hierárquicas ocupadas pelos envolvidos na relação.

É notória a superioridade da eficácia da autoridade sobre o poder, no entanto necessita-se de um aprimoramento nas relações de autoridade. O poder gera uma ação apenas na força de trabalho, mas não implica em comprometimento real com a causa. A autoridade permite ao líder que não só obtenha a força de trabalho, mas o total comprometimento para com a causa e os possíveis objetivos. Nesse contexto, imputar confiança é fazer-se igual aos liderados, mostrar-se igualmente comprometido com os erros e acertos na busca pelo objetivo. O líder se faz servo e sente-se bem em apresentar-se assim aos liderados. “A influência e a liderança legítimas são conseguidas com trabalho e sacrifício”. (Hunter, 2006)

Deter-se a caracterizações ou esquemas é menosprezar a grandiosidade das variáveis que envolvem e permeiam as relações humanas, porém, alguns princípios podem ser notados nos líderes que se apresentam com eficácia perante seus liderados, mesmo sendo eficácia um conceito subjetivo, amplo e atrelado aos objetivos a serem alcançados. Esses princípios ou axiomas formam o direcionamento de uma relação de liderança baseada na inspiração de confiança para com o grupo: autocontrole, gentileza, humildade, respeito, altruísmo, perdão, honestidade, compromisso, disposição para tentar o que não foi tentado antes, motivação pessoal, senso agudo de justiça e profunda crença em seus princípios. (Hunter, 2006; Marins Filho, 2009)

“Ao contrário dos valores, conceitos morais e éticos, que variam bastante entre as culturas e ao longo dos tempos, os princípios são leis abrangentes, fundamentais e inalteráveis”. Os princípios supracitados permitem que o indivíduo preste-se à condição de líder, não usurpando do poder eminente da posição hierárquica. De igual modo, tais princípios são formadores de condutas que permitem uma relação interpessoal salutar e edificante. São esses apontamentos, fundamentais e inalteráveis, que direcionam as relações de liderança, que conduzem, ou deveria conduzir, a migração de indivíduos pelas respectivas posições hierárquicas. Porém, o que nota-se usualmente é que a ascensão aos níveis superiores de status se dá por fatores escusos aos apontados nos princípios do líder que inspira confiança, são fatores alheios à capacidade real e concreta de se gerir e desenvolver uma liderança eficaz. Comumente confunde-se autocontrole com omissão, gentileza com elogios sob “segundas intenções”, humildade com subserviência, respeito com o medo de opinar, altruísmo com falta de amor próprio, perdão com falta de critério nas tarefas executadas, honestidade com grosseria, disposição para tentar o que não foi tentado antes com devaneios inconseqüentes e insustentáveis, motivação pessoal com prepotência, profunda crença em seus princípios com encerrar por completo a possibilidade de diálogo com aspectos novos a sua realidade de líder. Esta, que separa princípios e valores, é uma linha muitíssimo tênue e, solucionadas as diferenças entre as possibilidades que se contrapõem com tanta proximidade, acaba caracterizando a maturidade de um líder que é sensível às necessidades do grupo quanto aos objetivos a serem alcançados, mas, principalmente, sensível ao grupo e suas necessidades para manutenção desses objetivos. (Hunter, 2006)

Para Peter Drucker, “a exigência final da liderança eficaz é a conquista da confiança. Se não for assim, não haverá seguidores. E a única definição de líder é alguém que tem seguidores”. Obter seguidores será, em essência, o salário daquele que se propõe a construir relações de respeito e compromisso com o grupo, sem ater-se à realidade de liderá-lo, mas na intenção de mostrar-se membro constituinte desse grupo. Mostrar-se comprometido com as causas e objetivos do grupo. Em nossas comunidades de fé, torna-se inconcebível uma postura que não perpasse pelo respeito, compromisso e liberdade. No contexto da eclesiologia, o conhecimento da consciência, tanto individual quanto coletiva, jamais deve ser recenseado por qualquer poder hierárquico, afinal, o objetivo é a busca pela relação da humanidade com a própria humanidade, bem como da humanidade com o Sagrado. Celebrando, de forma livre, respeitosa e comprometida a fé da comunidade.

Em oposição ao apresentado, sobre a urgência de líderes que inspirem confiança, não são raros os casos dos líderes eclesiásticos que se perfazem de leões. Usurpam das posições hierárquicas conseguidas para sobrepor-se sobre a comunidade com as forças do poder coercitivo e usando-se dos símbolos de fé de sua comunidade. Jimmy Sudário Cabral denuncia que “uma hermenêutica fundamentalista, onde os lideres se utilizaram de textos bíblicos para manterem-se na hegemonia do poder, emolduraram todo o quadro colonizador e usurpador da América latina”. Contra essa realidade de opressão que emana do poder, resiste o líder que inspira confiança em seus liderados, afinal, submeter e subverter seus liderados, em suma é, submeter e subverter a si mesmo, o Sagrado e a consciência quanto a este sagrado, pois todos, concomitantemente, formam o principal, a própria comunidade. (Cabral, 2009)

BIBLIOGRAFIA

CABRAL, Jimmy Sudário – Bíblia e teologia política: escrituras, tradição e emancipação / Jimmy Sudário Cabral. – Rio de Janeiro: Mauad X: instituto mysterium, 2009.

HUNTER, James C. – Como se tornar um líder servidor / James C. Hunter: trad. de A. B. Pinheiro de Lemos. – Rio de Janeiro: Sextante, 2006.

MACHIAVELLI, Nicoló di Bernardo dei, 1469-1527 - O príncipe / Maquiavel: Trad. Antonio Caruccio-Caporale. – Porto Alegre: L&PM, 2008.



Thiago Barbosa

Nenhum comentário:

Postar um comentário