A arte de pensar livremente

A arte de pensar livremente
Aqui somos pretensiosos escribas. Nesses pergaminhos virtuais jazem o sangue, o suor e as lágrimas dos que se propõem a pensar com autonomia. (TeHILAT HAKeMAH YIRe'aT YHWH) prov 9,10a

quarta-feira, 18 de maio de 2011

E disse o Dr. Osvaldo Luiz Ribeiro!

E quando ele diz, a meu ver, vale a pena, ao menos, ouvir com atenção. O que disse abaixo reflete o que hoje poderia ser a melhor forma de se posicionar ao questionamento sobre vida pós morte, a ontologia de Deus e a realidade da alma. Um sacerdote Inglês da Igreja Anglicana disse com propriedade: "a essas questões só nos resta dizer 'não sei, não tenho certeza'!" Abandonaremos nossas certezas? Daremos espaço para a dúvida? Fé em que direção? Dos crentes religiosos?  Dos crentes ateus?
Gosto da Esperança que a religião nos traz. Aquela que impulsiona a vida em direção a um viver intenso em busca da utopia brilhante de um novo amanhã.



"1. Não li ainda nem o livro nem a entrevista ao The Gardian. Li, apenas, a "nota" no Último Segundo: o grande físico - Stephen Hawking - teria afirmado que o cérebro é como um computador: quando quebrar uma peça, pára de funcionar, de modo que vida após a morte - e Deus - são ilusões de mentes com medo do escuro: o cérebro vai parar, e acabou. Para Hawking, aos 69 anos, e preso a uma cadeira de rodas por conta de uma doença degenerativa, não há necessidade de se explicar a origem do Universo por meio da hipótese de Deus - os homens, estamos sós e existimos em favos de carbono - mais nada. Lá fora, sopra apenas o vento da Tabela Periódica encantada...



2. Não serei eu a desmenti-lo: há, agora, assunto para duzentos sermões! Todavia, pode parecer sofisticação retórica apenas, mas assevero, não é: trata-se, isso aí, de "fé". Uma fé no oposto da fé clássica, mas, ainda assim, uma fé. Somente pela fé Hawking pode dizer que não há nem Deus nem vida após a morte. É uma fé heróica, eu diria, principalmente para quem está numa cadeira de rodas, e poderia depositar confiança de que do outro lado as coisas lhe sairiam melhores. Mas, como ele sugeriu: Hawking não tem medo do escuro. Sim, que o cérebro vai parar, isso vai - mas não podemos descartar a hipótese de Gasparzinho... uma alma absolutamente desprendida do corpo... Vai saber...



3. Certo: sabemos que a "idéia" de Deus veio a nós dentro e através de nossa história milenar - a noção de morte, de deuses, de vida além, tudo isso são criações humanas, profundamente antropológicas. A fé teísta - crente - que não tem consciência disso, é apenas fé, sem qualquer esclarecimento: um amontoado profundo de crenças emocional e tradicionalmente organizadas e sustentatadas.



4. Todavia, o fato de essas idéias terem surgidos na consciência humana dentro da história humana não significa - em termos epistemológicos - que as grandezas que elas pretendem representar não existam. As idéias são humanas - é verdade. Não cabe doutrina divina, absoluta, "verdadeira". Tudo, absolutamente tudo, da doutrina dos anjos a da salvação, constituem construtos humanos. Todavia, não se pode nem assumi-las, as doutrinas, como certeza nem abandoná-las em nome da mesma certeza. No campo de trabalho de Hawking, são impossibilidades epistemológicas, e não será em seu campo que decidirá por sua validade...



5. Preso ou não em sua cadeira de rodas, Hawking, como todos nós, decidirá - e decidiu (se decidiu!) essa questão no campo da aposta pessoal, da fé, da adesão a um sim ou a um não sem qualquer outra base que o sim e o não que, depois de dados, consideram melhor fundamentados os argumentos racionalizadores que defendem sua posição. Hawking deve considerar mais "racional" o ateísmo, tanto quando "Ratzinger", o teísmo: empate...



6. Eu não tenho pressa em fazer minha aposta. Venho de uma igreja que exige apostas, tomadas com o desconhecimento de se tratar de aposta, de risco, de imprevisibilidade - a segurança que apregoam está baseada na força que dão à própria aposta: é ela, a aposta, que faz de si mesma o que é - segurança... Mas, olhando de fora, não é mais do que isso: um sim carregado de desejo e engajamento emotivo... Como o não de Hawking.



7. Eu vou esperar pra ver. Se é que haverá algo para ver. Se é que haverá quem veja."


Osvaldo Luiz Ribeiro



Jonathan





quarta-feira, 11 de maio de 2011

A teologia sob limite - fé(?) e teologia(?)?


JOSGRILBERG, Rui de Souza – Teologia sob limite: A fé em busca da teologia – Rui de Souza Josgrilberg; Jaci Maraschin (org.); ASTE, São Paulo, 1992.
Desde Immanuel Kant em sua “Crítica da Razão Pura” a religiosidade do Ocidente passa por uma analise profunda dos critérios que formam o pensamento teológico. Em “A fé em busca da teologia”, Rui de Souza Josgrilberg busca estabelecer critérios que possibilitem a percepção do estado da questão no século XXI.
A fé em busca de teologia tem por intento impor maior clareza sobre as análises e pensamentos que se constroem mediante a fé, denominada teologia cristã, buscando para isso critérios legítimos da cientificidade moderna. Assim, teologia “é o discurso desenvolvido a partir de dados básicos da revelação e seus desdobramentos na igreja”. É, portanto, profundamente comprometida com o seu objeto de estudo e avaliação.

A ciência, em tese mais livre de seu objeto em análises, mostra-se em busca de uma permanente reconstrução, mostrando-se pronta para retificações e reinterpretações. Há a evidente necessidade de reconhecimento quanto à exposição e desenvolvimento dos discursos teológicos à critica epistemológica, fator básico na projeção adequada do objeto de análise teológico que providencia uma construção científica rigorosa do objeto teológico.

Quanto ao objeto de análise da teologia, é, em suma, insondável. Tem uma inegável dimensão mística, ontologicamente concebida, e, mesmo assim é insistentemente referida como matriz em estudo. A teologia é, pois, “um conhecimento que se constrói com seus pressupostos, que esse conhecimento pode ser, tem a possibilidade de ser ciência, que exige ao mesmo tempo interpretação e constitui-se, em boa parte, mas não exclusivamente, como hermenêutica”.

Em seu objeto de estudo, a teologia, percebe a característica do insondável, prevenindo contra qualquer pretensão de conhecimento fechado/limitado ao rigor empírico, no entanto revela que sua epistemologia deve ter um rigor pronto para outras/novas possibilidades.

Como tem em seu âmago a interpretação textual da literatura sagrada, é através do texto que a significação, os conceitos, as idéias, a descrição, as imagens, os símbolos etc., adquirem permanência e permitem o trabalho científico e hermenêutico. A ciência interpretativa que dá forma ao pensamento teológico, tanto quanto todo conhecimento discursivo que busca objetividade de um critério científico, deve exigir um processo cíclico de construção, ruptura, alternância, relatividade e retificações, senão todos ao mesmo tempo, ao menos cada um desses em momentos particulares. A epistemologia aberta é, portanto, muito mais amplos e diversificados que a restrição epistemológica do empirismo lógico.

O pensamento teológico como ciência da fé busca inteligência para sua manifestação, dando novas percepções ao estudioso e aos que, em algum momento, recebem dessa ciência. Não é então imputação religiosa, apologética, dogmática, sistematização denominacional, mas antes, transcende tudo isso pela ação de seu objeto de estudo, a revelação da fé. A fé carrega um contínuo apelo e uma exigência de conhecimento, é então condição sine qua non para teologia, evidenciar a fé racional é um serviço da igreja pela própria igreja.

Deus e sua revelação mostram-se como objeto e sujeito para a fé racional. A razão tem seus direitos, pode e deve entender a fé.  Deve buscar-se uma aproximação entre a fé e o conhecimento racionalmente entendido, juntos na formação do pensamento teológico, Deus é objeto/sujeito que concede a razão, não se opõe a ela, mas está para ela como está para as artes, leis, governo, sendo debilitada sua ação pela vaidade.

Kant apresenta uma universidade idealizada, laica e independente do Estado, com a percepção de um cosmos infinito é Deus que passa a ser concebido segundo as idéias da nova cosmologia. Em contrapartida, há ênfase na fé racional, sobremaneira no círculo pietista, ou ainda na teologia da moral, ambos enaltecendo a experiência religiosa como condição da revelação, ou mesmo com sua inserção na natureza ou na história.

A transformação maior se dá na teologia liberal que aponta para elementos da crítica bíblica e da crítica das mistificações da consciência burguesa, e ainda propostas evolucionistas, que têm seus primeiros ícones na transição do século XIX e XX. Schleiermacher  é excepcional ao propor o respeito ao conteúdo originário do discernimento da fé pela revelação, seguindo esclarecimento intuitivo-descritivo, que hoje nós chamaríamos de “fenomenológico”. A teologia reflete sobre a fé, mas não pode substituí-la com os seus conceitos, suas reflexões e suas interpretações.

Karl Barth é um passo atrás no desenvolvimento de um pensamento teológico moderno, sua proposta volta com a teologia aos arcabouços do pensamento medieval, pois Deus fala e a igreja ouve. A revelação só existe para a igreja e a teologia só tem valor como teologia da igreja. A transposição desse fosso epistemológico “Barthiano”, a hermenêutica é muito mais que uma contextualização da mensagem, pois interpreta a partir de lugares hermenêuticos tematizados, a partir de matrizes sociais de produção de sentido. Desenvolvem-se sob a sociologia e a antropologia verdadeiras chaves hermenêuticas para interpretação do sentido de realidade. O pobre, o negro, a mulher, o índio, a prática relacional retoma o sentido hermenêutico do texto revelado. Esse foi uma postura apologética da igreja, mas que a levou a uma postura epistemológica fechada.

O pensamento teológico como teologia cristã, possui a particularidade da presença divina. Assim difere-se da ciência da religião ou da percepção rígida da fenomenologia, antes têm sua ação sob a revelação. Fenomenologia e a abordagem cientificista da religião são faces de um mosaico formador do pensamento teológico. Se, de um lado, partimos do princípio de que Deus fala, por outro lado é evidente que somos nós que expressamos essa fala de Deus nos discursos humanos. A revelação tem em si uma latência, transcendente por excelência, que é irrisório para o positivismo da fenomenologia.

A maior auxiliar na revisão do pensamento teológico moderno é a própria modernidade. Ao questionar a cientificidade da teologia, deu-lhe a oportunidade de precisar mais a produção de conhecimento que elabora. Esse rigor epistemológico deve então continuar na contemplação de Deus e da revelação; o pensamento teológico é localizado na igreja e na cultura, mas transcende ambas as instituições e as une. A teologia pode ser então caracterizada como sendo uma ciência sobre um dado prévio e revelado, assumido como tendo uma primeira expressão validada e reconhecida pela igreja, mas não obedecem, ainda, cânones científicos da cultura, o que é alcançado de forma essencialmente descritiva e pela cooperação das ciências vizinhas de seu campo, e que chega a seus frutos mais acabados nas expressões hermenêutico-praxísticas, que situam seu discurso e sua importância em prover sentido e perspectiva de ação em diferentes contextos.

Thiago Barbosa

O que é pecado? Após Delambre Oliveira, Leonardo Boff, Alfonso Garcia Rubio e Pannemberg...


O que é pecado?

O pecado tornou-se, entre outros, um grande chamariz da instituição igreja preocupada em prospectos numéricos no seu desenvolvimento. O medo e a insegurança, usualmente adjetivos atrelados ao tema pecado, são as forças que por vezes faz com que as pessoas se aproximem da religião, criando nestes, sentimentos que os escravizam às suas denominações. A pastoral que entende a ação de Deus na história e se preocupa com a percepção holística da salvação em Jesus busca repensar o pecado como força escravizadora e temerária aprofundando os questionamentos humanos aos níveis mais profundos e existenciais, e, assim, buscando compreender a dimensão do pecado na vida humana.

Tanto a criação como a redenção devem ser pensadas num co-texto cristocêntrico. Jesus Cristo é o modelo exemplar de homem, já que desenvolve plenamente as esferas propostas: filho, senhor e irmão. O pecado original é uma situação geral de decadência da situação humana, criando as possibilidades concretas para que haja a mentira, o furto, o ódio e a exploração. Assim sendo, o pecado é a deturpação ou conduta desviante das esferas centrais do desenvolvimento humano: o homem como filho, o homem como senhor, e, o homem como irmão.

A teologia, compreendendo que em Deus há a essência de vida para os humanos (não apenas cristãos, mas em um sentido mais amplo), percebe-se a relação intrínseca entre o cristianismo e a vida. O pecado seria não apenas uma conduta desviante moral, refém dos preceitos de uma cultura específica ou abordagem étnico-social esperada, mas, acima de tudo, torna-se aquilo que se opõe à vida humana e/ou àquilo que a mantém e permite. Pecar contra Deus é pecar contra a vida e sua manutenção, seu desenvolvimento.
Nossa unidade com Cristo pertence ao plano eterno de Deus. E Deus realiza e realizou este plano – mesmo com e contra o pecado – para nossa redenção e glorificação. Jesus Cristo foi o homem que conseguiu ser totalmente filho, senhor e irmão.

Inicialmente percebe-se a necessidade da desmistificação da temática, bem como, principalmente a abordagem do pecado original vinculado ao texto de Gênesis. Esta vinculação é sumamente agostiniana e, a partir daí, ganha força descomunal no ideário cristão. Nota-se nesse sentido que a possibilidade de o pecado original estar vinculado ao texto de Gênesis, capítulo três ser um erro de proposta metodológica de ordem exegético-hermenêutica. Assim sendo é refém de uma metodologia histórico-gramatical e de abordagem fundamentalista-alegórica. Uma análise, mesmo superficial, utilizando-se da crítica das fontes e da crítica das tradições poderia elucidar vários aspectos do texto como: seu uso, sua intenção, ou mesmo o seu lugar vivencial (sitz im lebem). Ali, onde antes ocorria a “queda original” da humanidade vê-se uma possibilidade de acesso à consciência humana e uma chamada à liberdade de um mundo não apenas restrito ao paraíso; agora o lugar vivencial humano é muito mais amplo e abrangente.

Imersos nesta “nova” percepção, vemos uma urgência em apontar para a perspectiva neo-testamentária, sobretudo nos escritos paulinos, já que este se dispôs ao diálogo com a cultura e preocupou-se profundamente com a condição existencial daqueles que ainda não se encontravam como sujeitos religiosos. A perspectiva paulina é holística de maneira que não vilipendia os princípios de salvação/redenção de Cristo ao universo religioso, antes se preocupa em universalizar a vida cristã e o próprio Cristo como o algoz do pecado e libertador do homem para a vida que é, assim, a essência divina desse homem.

O caminho para uma pastoral imersa no pensamento teológico e relevante para século XXI possivelmente será o de revisitar os dizeres que se tornaram censo comum dos ambientes eclesiásticos, entendendo sua origem e formação, e, então, desmistificando o pecado como conduta desviante de uma moral ou ética enviesada por grupos de domínio. Haverá assim a possibilidade de se apontar para a supremacia da salvação/redenção, mostrando-a intimamente relacionada à abominação do novo sentido de pecado. O pecado deixaria de impor-se por meio do medo e do receio ao inferno, mas se mostraria “demoníaco” às pessoas por afrontar a especificidade máxima do ser humano que é a vida em toda a sua plenitude. A fuga do pecado pelo sujeito religioso não se daria pela imposição de uma tradição distante e inerte, ou de um discurso ideologicamente concebido pelo líder, ou ainda pela relação de domínio/opressão da luta de classes; essa fuga se daria pela essência do homem que clama por uma vida sustentável, livre e plena.

Thiago Barbosa

Sermão para Comunicação e Pregação - Quando Deus grita por socorro


QUANDO DEUS GRITA POR SOCORRO.

EXORDIO
O século XIX certamente foi o mais cáustico e atroz para a comunidade cristã. Os arroubos céticos da ciência e da filosofia tornavam-se impossíveis de serem menosprezados. Se Friedrich Nietzsche anuncia: Deus está morto; Ludwig Feuerbach é o assassino confesso ao propor que não foi Deus quem criou os homens, mas verdadeiramente foram os homens que criaram a (os) Deus (es), sendo esse (s) nada mais do que projeções humanas. A cristandade então não deveria debruçar-se sobre os estudos teológicos, mas sim sobre os estudos antropológicos.
Qualquer apologista menos preparado certamente encontra-se em situação difícil quando se depara com tais afirmações, enfáticas e, sobretudo contundentes, afinal todos esses que se arvoram à morte de Deus eram quando crianças, em absoluta maioria, religiosos convictos e até que se prove o contrario religiosos denominacionais. Sendo assim não creio que sua denúncia seja referente a Deus e suas dimensões transcendentais ou metafísicas, mas giram sobremaneira quanto ao uso do conceito de Deus, bem como do fato de homens religiosos deterem em suas mãos a dimensão última de Deus e seu agir. Ao levar tais pensamentos a sério percebemos em Dietrich Bonhoeffer, mesmo em sua pequena cela, escrever a seu amigo Ebehrard Bethge: É preciso um cristianismo “arreligioso” para um mundo que se tornou adulto. Há de se transcender o próprio rigor religioso, próprio dos que buscam aprisionar o “superDeus”, o “superótimo”.
A vociferação dos filósofos românticos alemães, não é contra o Deus transcendental-metafísico, mas certamente e justamente contra os líderes institucionais que se apropriaram de Deus tornando-o refém de suas vontades e perspectivas.
Mas, contrariando aqueles que têm uma perspicácia menos acurada, esse não é um fenômeno moderno, é um fenômeno que acompanha a história da religião, acompanha a própria relação de Deus-criador com o homem-criatura. Os homens sempre buscaram deter os discursos a respeito de Deus e usar essa ideologia a seu favor.

NARRATIO – 2 Re 23,28-29; 2 Cr 35, 20-24
Ora, o mais dos atos de Josias e tudo quanto fez, porventura não está escrito no livro das crônicas dos reis de Judá? (2Ki 23:28 ACF)
Depois de tudo isto, havendo Josias já preparado o templo, subiu Neco, rei do Egito, para guerrear contra Carquemis, junto ao Eufrates; e Josias lhe saiu ao encontro. (2Ch 35:20 ACF)
Nos seus dias subiu Faraó Neco, rei do Egito, contra o rei da Assíria, ao rio Eufrates; e o rei Josias lhe foi ao encontro; e, vendo-o ele, o matou em Megido. (2Ki 23:29 ACF)
Então ele lhe mandou mensageiros, dizendo: Que tenho eu contigo, rei de Judá? Não é contra ti que venho hoje, mas contra a casa que me faz guerra; e disse Deus que me apressasse; guarda-te de te opores a Deus, que é comigo, para que ele não te destrua. (2Ch 35:21 ACF)

Porém Josias não virou dele o seu rosto, antes se disfarçou, para pelejar contra ele; e não deu ouvidos às palavras de Neco, que saíram da boca de Deus; antes veio pelejar no vale de Megido. (2Ch 35:22 ACF)

E os flecheiros atiraram contra o rei Josias. Então o rei disse a seus servos: Tirai-me daqui, porque estou gravemente ferido. (2Ch 35:23 ACF)

E seus servos o tiraram do carro, e o levaram no segundo carro que tinha, e o trouxeram a Jerusalém; e morreu, e o sepultaram nos sepulcros de seus pais; e todo o Judá e Jerusalém prantearam a Josias. (2Ch 35:24 ACF)

Sobre os relatos contidos em 1 Re 12 – 2 Re 25 vemos que:
“Aqui se tornam transparentes o modo da composição e os interesses desta abordagem. Ela está orientada por completo para a pessoa do rei em questão. Não obstante, dele relata tão somente os fatos básicos, e de resto remete o leitor às fontes indicadas. A avaliação religiosa, orientada pela exigência do Deuteronômio acerca da pureza do culto de YHWH e da unicidade do lugar de sua adoração, tem especial importância para a abordagem em seu conjunto” [1].
Assim sendo, em 2 Re 23:29-30 há a descrição da morte de Josias pelo faraó Neco, em Megido. Aparentemente Neco havia apoiado o rei Assírio, assim, Josias pôs-se em contraposição a isso talvez para evitar que o poder assírio fosse fortalecido com a ajuda egípcia, ou ainda no temor da hegemonia assíria se voltasse contra seu reino. Fato é que Megido foi o local de morte do rei Josias, o reformador de Judá.
Em toda a construção da obra Historiográfica-Deuteronomista aponta para Megido, em um período tribal (Josué e Juízes) como grandeza citadina a ser conquistada. Como abordam tradições muito antigas, é possível que ainda não haja na intenção do autor a visão de um ambiente citadino fortificado, embora possa notar-se o uso de Megido como centro de patrulha egípcio na transição entre primeiro e segundo milênio[2]. Tal pensamento seria condizente com a abordagem sincrônica, onde os grupos de Josué e Juízes ainda reflitam sobre grupos “hapirus”, migrantes no ambiente do crescente fértil e que buscam estabelecer-se em um processo de sedentarização, abandonando a transumância característica desse povo.  Já no período dos reis observa-se já o processo de fortificação instituída, em maior ou menor grau dependendo do regente observado. Certamente o fato de ter se encontrado grandes estábulos no território de Megido atribui, tradicionalmente, sua elevação em importância ao período salomônico. Já aqui é possível perceber que Megido sempre está envolta por apontamentos de revolta, guerra e morte de reis. O contexto de batalha sempre ocorrendo em seus territórios pode ser explicado pela importância das vias que a circundam na locomoção de exércitos que insistentemente oprimiam os habitantes do Crescente Fértil nos períodos mais remotos (como observado em ação dos egípcios e assírios), passando pelo domínio babilônico, persa, helênico e romano. Todos, sem exceção, utilizam-se das vias que percorrem os arredores de Megido para a locomoção de tropas, transporte bélico e de mantimentos. Assim, no imaginário do autor da Obra historiográfica-deuteronomista está clara a idéia de que Megido é um centro de disputa, tanto em tempos remotos como em períodos contemporâneos. Corroboram com essas perspectivas as descrições dos portões, fortemente adaptados tais como os de Hazor, e sua localização nas colinas, de onde é possível visualizar toda a movimentação nos arredores da cidade desfrutando de sua proteção oriunda de sua localização topográfica privilegiada.
Em 2 Cr 35:22 novamente traz à tona a morte do rei Josias, fato já relatado em 2 Re 23:29-30. Fica claro na comparação das duas passagens uma diferença pertinente e marcante: enquanto no relato de Reis fica evidente a brava participação de Josias contra o faraó Neco, mesmo com sua morte no território de Megido. Na descrição de Crônicas a morte de Josias se dá pela desobediência. O próprio Deus fala para Neco ir contra os assírios, assim quando Josias se volta contra Neco, volta-se na verdade contra Deus que já havia orientado o egípcio. O que é marcante aqui é a mudança de perspectiva. Se na historiografia-deuteronomista a morte de Josias é um ato bravo de um rei que se opõe contra os opressores coligados, a saber, Egito e Assíria, na historiografia-cronista a morte de Josias é um ato de desobediência e desatenção para com as palavras de Deus. Vemos em prática a doutrina da retribuição característica nos textos do Cronista. Um fato negativo que ocorre com um rei do Sul deve ser justificado por seu descumprimento da aliança. Caso isso não fosse feito, a idéia de um Deus coligado à nação é tão forte que ao vencer Josias em uma batalha, Neco teria vencido também o próprio Deus do reino do Sul. Colocando Deus em contato com o faraó Neco e Josias em combate com este monarca que havia recebido direcionamento do próprio Deus, o Cronista salvaguarda a divindade de Deus em detrimento da imagem de um monarca morto.
O autor da historiografia-cronista utiliza da não canonização dos textos existentes no intuito de retocar os textos anteriores produzindo uma obra que fala por si mesma, sem necessidade de comentários. “Salvaguardar a unidade religiosa do povo de Deus foi uma das preocupações mais fortemente sentidas durante o período pós-exílico” [3]. Talvez seja essa a força que direciona os retoques como os vistos no relato da morte de Josias em 2Cr 35:22. Esta obra trata de uma exortação à unidade, exaltando laços étnicos e religiosos que unem tradições antes díspares. O Cronista defende títulos e direitos de Jerusalém e sua centralidade como centro religioso, bem como ocorre nos relatos dos reis do Sul, sumamente na linhagem “davídica-salomônica”.
Os redatores da Obra deuteronomista, assim como o redator da Obra cronista, detêm o posicionamento de Deus. Aliás, posicionamento que tais redatores pensavam que tinham pleno conhecimento e que poderiam fazer tais apontamentos. O Deus deuteronomista sempre se posiciona favorável aos reis do Sul, sobremaneira com Josias que se torna o principal reformador político-religioso, sendo inclusive tido como possível mandatário do processo redacional deuteronomista. Sua morte representa a morte de um processo reformador por isso o choro de toda uma nação. Em contrapartida, a redação cronista formada pelos repatriados do pós-exílio não podem associar a imagem de Yahweh, o Deus estatal, com um rei que foi morto em batalha. Yahweh está com a parte vitoriosa sempre, não poderia de modo algum se atrelar aos derrotados, oprimidos, exilados. Antes está com os que retornam em júbilo para a terra original, “a glória da segunda casa será maior que a da primeira”.
Mas o intento do pensamento teológico que revê a prática pastoral leva a um questionamento fundamental. Pode um religioso exercer seu papel de liderança sem ater-se a deter as ações e pensamentos do próprio Deus? Creio que sim, mas para tal há de se refletir, ao menos superficialmente em alguns aspectos.


RATIO
1 – Deus é símbolo para Deus.
A proposta de Paul TIllich é de fundamental importância no entendimento da dimensão intangível de Deus, bem como  do papel especulativo do teólogo/religioso. Aqui se vê que há um Deus que assume a dimensão simbólica para o outro Deus que é de uma dimensão não delimitada.
Se o primeiro Deus é um símbolo, “tende-se a considerar a cultura e os sistemas simbólicos em geral como um instrumento de poder, isto é, de legitimação da ordem vigente” [4]. Esse Deus é então fruto de um sistema racional proposto que busca elucidar e apresentar uma racionalização sobre Deus. Neste sentido atende-se prontamente aos apontamentos de Ludwig Feuerbach, afinal faz-se necessário um estudo antropológico das manifestações desse Deus na história, na cultura, na vida das pessoas. Necessário é entender que o Deus que é símbolo é o Deus da teologia, dos estudos, das especulações, dos discursos humanos. Mas é imperioso aclarar a idéia de que esse Deus primeiro é simbólico, fruto de um construto humano, portanto limitado e, porventura falho.
O segundo Deus é o da mística, da experiência, do transcendente, do metafísico. Assim assemelha-se nosso pensamento ao de Pseudo-Dionísio de Aeropagita: “A causa perfeita e unitária de todas as coisas está acima de qualquer afirmação, e a excelência dAquele, que está absolutamente separado de tudo, e acima de tudo supera toda negação”[5]. O segundo Deus na afirmação de Tillich transcende toda afirmação e negação que possa ser feita a respeito d’Ele.
O primeiro passo do teólogo/religioso é perceber que o Deus proposto e afirmado, estudado e redigido é um aparato simbólico, incapaz de afirmar ou negar, o Deus que é.

2 – O líder se faz pela confiança que inspira em seus liderados
“Se você quer conhecer o homem, dê poder a ele”. Nicolau Maquiavel é primaz ao apontar os perigos do poder e como este poder pode mudar o comportamento de certas pessoas. O cristianismo é fundamentalmente uma subversão de valores hierárquicos. É o líder que se põe aos pés dos discípulos para lavá-los, é aquele que usurpa ser o primeiro que se faça o último, é o próprio “filho de Deus” que não toma seus seguidores por “liderados”, mas sim por amigos. Em contraposição vivemos dias de apóstolos televisivos, mega concentrações de milagres, líderes da fé que detêm o agir e o efetuar do próprio Deus. Uma inversão, beirando à irracionalidade, dos valores, se não cristãos, ao menos humanistas.
Quando vejo filmes de batalhas épicas chama a atenção o fato de o grande líder, comandante da força de ataque principal, sempre está às voltas com seus soldados, dos mais graduados, aos menos relevantes, todos percebem em seu líder a proximidade de todos os dias. Os grandes líderes não estão distantes dos liderados, antes estão juntos, caminham lado a lado, os ferimentos da batalha são idênticos em ambos, e é justamente a proximidade que faz com que o respeito e a admiração pelo grande líder sejam adotados e inquestionáveis. Ao nos aproximarmos dos grandes generais épicos sentiríamos o cheiro do suor, da poeira, do sangue e das lágrimas. Ao nos aproximarmos de um teólogo/religioso deve ter o cheiro da dor das pessoas, das lagrimas vindas do desespero, eventualmente da alegria e satisfação. O teólogo/religioso é o que estuda e pensa as pessoas em suas infindas buscas pelo Deus intangível, tal qual qualquer pessoal que está nos bancos de sua comunidade. Assim, o pronome demonstrativo adequado para as “falas congregacionais” sempre deveria estar na primeira pessoa do plural. Estamos todos “NÓS” na busca por um Deus transcendente. A dicotomia de classes – dominador e dominado - é quebrada ao menos nas comunidades de fé, e temos a esperança de que ideários como os da Igualdade, Liberdade e Fraternidade seja idealizados e buscados na construção diária da fé.

PERORATIO
Percebemos que no contexto protestante, valores como o sacerdócio universal são vilipendiados na formação de um corpo profissional de sacerdotes modernos, que visam aprisionar Deus em concepções e apontamentos próprios destes líderes e, assim, assumem como pré-requisito básico para a liderança eclesiástica o autoritarismo. Tais líderes têm na sistematização da hierarquia “divinamente inspirada” sua força e sustentáculo, pilar central de ministérios que visam inculcar seus liderados no intuito de que não percebam que são marionetes, nas mãos desses sacerdotes. De igual modo, tais líderes tomam para si a dimensão transcendental de  Deus e o aprisionam em suas vontades e desejos.
Hoje esse Deus que se revela ao homem na cultura e na história grita por socorro, no fundo de sua cela ideológica, e vê nos futuros líderes seu sonho de retorno à liberdade. Cabem-nos, futuros líderes teólogos/religiosos, a força para libertar esse Deus aprisionado, usando para isso a lembrança de que nossas especulações são, por mais genuínas, especulações simbólicas e finitas de um Deus infinito. De igual modo cabe o emparelhamento com os fiéis que experimentam e buscam pelo Deus transcendental da esperança e da graça salvadora.
Talvez atentando para os limites dos estudos, e da hierarquia venhamos a interpretar com uma sombra de proximidade os versos de Jó 42, 5-6: “Com o ouvir dos meus ouvidos ouvi, mas agora te vêem os meus olhos. Por isso me abomino e me arrependo no pó e na cinza.”

N’Ele, que foi, é e será.
Thiago Barbosa








[1] RENDTORFF, Rolf – Antigo Testamento: Uma introdução – Rolf Rendtorff; tradução de Monika Ottermann. – Santo André: Ed. Academia Cristã, 2001. P. 72.
[2] Cf. SHAFER, Byron E. (org.), 1938 – As religiões no Egito Antigo: deuses, mitos e rituais domésticos – Byron E. Shafer (org.), John Baines, Leonard H. Lesko, David P. Silverman; trad. Luis S. Krausz. – São Paulo: Nova Alexandria, 2002.
[3] LAMADRID, Antonio González – As tradições históricas de Israel: Introdução à história do Antigo Testamento – Antonio González Lamadrid; trad. José Maria de Almeida. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1996. P.153
[4] Bourdieu, Pierre – A economia das trocas simbólicas – Pierre Bourdieu, trad. Sérgio Miceli; São Paulo, Ed. Perspectiva S.A., 1974, p.VIII.
[5] Dionísio, o Aeropagita, santo – Teologia Mística – Pseudo-Dionísio Aeropagita; trad. Marco Lucchesi. Rio de Janeiro. Fissus, 2005. P.36