Super-Bonder® - uma percepção histórico-social dos versos iniciais do
livro de êxodo
O
texto tradicionalmente trata da entrada dos “filhos de Israel” no Egito, bem
como de seu pretenso crescimento populacional.
Ex
1.1-7 trata então de um texto de tradição sacerdotal. “Tem como interesse
evidente a acentuação de assuntos sacerdotais e cultuais, traz numerosos dados
cronológicos e outros semelhantes”, como a lista de epônimos tribais que
entraram na terra da opressão. Busca-se a datação destes escritos a partir do
século VI a.E.c., este é um século de “reviravolta, não somente para Israel,
mas para grande parte do mundo antigo”. Reconhecido por período axial.
A
religião monoteísta é tida como o emergir da revolução do período axial -
raciocinando por meio de mitos, e não historicamente - a Bíblia apresenta um
monoteísmo desde as origens da história de Israel, imutando tal história no
tempo. Esta é a perspectiva que se desenvolve no presente trabalho, o uso
histórico-social da lista de nomes em Ex 1.1-7, tendo como alicerce
epistemológico a história axial do período persa e, portanto, a organização
nacional dos repatriados e as discussões ideológicas sacerdotais no período do
império Aquemênida.
O
período axial é marcado pela emergência de uma série de inovações – símbolos
personificados de tendências gerais nas respectivas comunidades – tendo então,
protagonistas e tendências, diferenças respectivas à cultura, de igual modo
especificidades nas tradições, tendências culturais, com diferentes inovações
que vão do racionalismo à ética. Ele é tido como meta-histórico por alguns
historiadores que alegam o risco se não for enquadrado em condições precisas.
“Esse é um traço comum do período da emergência de elites intelectuais que não
são da organização do poder, como sempre fora antes, mas representam seu
espírito crítico, de oposição e de superação”
O estudo da genealogia é uma
busca pelo sentido das origens ou linhagens de grupos, bem como da sua evolução
e disseminação. É uma vertente auxiliar do estudo histórico, por intermédio de
um levantamento sistemático de seus antepassados, locais onde nasceram,
viveram, trabalharam, produziram, cultuaram, morreram, ou ainda, foram
sepultados, a genealogia utiliza-se das relações interpessoais para traçar
condutas e características dos grupos em estudo.
Isso é característico
quando se observa as ligações horizontais sendo estabelecidas, principalmente
sob o uso de genealogias onde figuras, originalmente isoladas, tornam-se
aparentadas deixando evidente o uso da ideologia dos redatores nesse processo
de composição. Possivelmente esse ideário reforça a importância da inserção de
relatos genealógicos durante todo o texto bíblico. São tais textos que
constroem as relações de proximidade entre leitores e escritores, grupos
dominantes e dominados.
Na Bíblia Hebraica as
genealogias são pontuadas pelas expressões “estas são as gerações de” (וְאֵ֙לֶּה֙ תּוֹלְדֹ֣ת) e “estes são
os nomes” (וְאֵ֗לֶּה שְׁמוֹת֙) como fórmulas de início ou abertura. A expressão וְאֵ֗לֶּה
שְׁמוֹת֙ inicia o livro de Êxodo, arremete à lista de filhos oriundos de
Jacó/Israel desde Gênesis 46, assim observa-se uma linearidade entre os dois
livros e os ideais que são construídos e transmitidos.
O termo ‘filhos de Israel’ é a
forma usual que se refere àqueles que são provenientes de Israel. “A
referência, pela raiz, de ‘filhos’ ao descendente biológico, torna-se uma
metáfora extensiva para descrever grupos de pessoas, de acordo com determinadas
funções ou características comuns”. Há, portanto, uma tendência de se relacionar
grupos sociais, inclusive em ampla escala, como grupos aparentados provenientes
de ancestrais epônimos, fazendo com que tais grupos tornem-se parentes. Assim,
‘filhos de Israel’ é adaptado ao estratagema pseudogenealógico de descendência
comum ao ancestral Jacó/Israel. Posteriormente todos os líderes tribais são de
certa forma, descendentes de Jacó/Israel.
Os nomes dos filhos de Israel
condizendo com os nomes das tribos configuram o uso das expressões como
epônimos. Sendo assim é recorrente a temática de que os descendentes desses
patriarcas são coerdeiros da aliança, não deviam se desentender ou lutar entre
si, o próprio fratricídio ganha ares de abominação desde o Gênesis. Todos os
descendentes de Jacó/Israel são irmãos, obrigando a uma conduta de lealdade.
Tal argumentação ganha força ao perceber adiante as aproximações quanto ao
javismo e ao templo sob o ideário pós-exílico.
Também se vê que a
reconstrução genealógica e a organização geográfica são, sobretudo, símbolos
ideológicos do habitus sacerdotal.
Age como controle mental e cognoscitivo, sem dúvida o século VI a.E.c. “se põe
em função de uma esperada retomada ‘nacional’; ou seja, esse é o contexto pelo
notável interesse pelo passado dos sacerdotes no pós-exílio. Esses acréscimos
caracterizam a deportação da elite judaica sacerdotal e dos escribas para a
Babilônia. Evidencia-se a aproximação do termo genérico terra da opressão ao
império babilônico. Esse ideário é responsável pela fomentação, na elite, de
instrumentos ideológicos para um projeto de reescrita do passado nacional,
onde, o sentido e a confiança na refundação estivessem projetados.
Nota-se
uma construção de uma única narrativa relativamente contínua para o passado de
um povo único, bem como de uma terra única. A ação sacerdotal constrói,
remetendo a uma experiência do passado, a terra tradicional dada por Deus, a
identidade familiar que aproxima tribos díspares – minimizando conflitos e,
consequentemente ações militares persas – propondo um ritual comunal ao redor
de um texto sagrado. A Torá, o Pentateuco nas tradições sacerdotais, é o modelo
de identidade israelita que enfoca a prática religiosa – para legisladores
religiosos – que marcam a cultura dessa identidade criada.
O
texto trata de um uma redação orientada pela ideologia sacerdotal que encontra
seu nascedouro no período pós-exílico, justamente no período de ação dos
imperadores persas sobre o Crescente Fértil. Estes versos estão
cronologicamente próximos de eventos cruciais para a história da nação
israelita, tais como: o fechamento da elaboração da Lei, o final do movimento
profético, o fim da historiografia deuteronomista, o sacerdócio jerosolimita em
ascenção ao poder, e a identificação nacional dos povos que perfaziam tal
ambiente geográfico com maior ênfase no aspecto religioso que político.
Quanto
à posição no cânon veterotestamentário, percebemos que o texto presta-se à
junção de propostas presentes nos livros de Gênesis e de Êxodo. Ao retomar a
lista de nomes exposta em Gn 46.8 o redator de Ex 1.1-7 imprime no leitor a
leitura linear e continuada dos dois livros. O leitor transita no arranjo
canônico quase sem perceber a grande ruptura literária que há entre tais
textos. Os versos em questão, quanto ao arranjo no cânon, funcionam como forte
junção entre ambos os textos. A Super
Bonder® é um produto da empresa Henkel à base de cianocrialato3 e é bastante utilizado
como colas instantâneas de ampla utilidade. No Brasil a cola da marca Super Bonder® tornou-se
sinônimo de colas instantâneas. O título do presente trabalho retoma esse termo
denotando a forte linearidade dos versos que funcionam como uma cola
instantânea, Super Bonder®,
que enviesa a percepção do leitor para uma continuidade entre Gn-Ex.
O
período histórico é condizente com o período axial – pela emergência de novos
simbolismos e tendências gerais na comunidade da época – sendo tal perspectiva
que alicerça Ex 1.1-7 junto ao período dos imperadores persas, quando acontece
a organização dos repatriados, bem como as discussões ideológicas sacerdotais.
Nesses versos há uma junção entre dois relatos etnogênicos da nação israelita.
A nação oriunda da transumância dos patriarcas bíblicos, e a nação que é
oriunda dos trabalhos forçados e dos pesados tributos na terra da opressão;
ambos os relatos etnogênicos são expostos, tendo como fio condutor, a lista de
nomes em Ex 1.1-7.
Notam-se
também duas fórmulas genealógicas presentes na Bíblia Hebraica, “estas são as
gerações de” e “estes são os nomes”, sendo que em Ex 1.1-7 está presente à
fórmula “estes são os nomes”. Se tal termo ocorre em Gn 46.8 e Ex 1.1 trata-se
de uma aproximação, ou tentativa de aproximação, dos redatores sacerdotais
javistas do Norte com os ideólogos do Sul. O que impossibilitaria, por si só, a
datação tardia proposta pelos pesquisadores mais tradicionais. Continuando, o
próprio termo “filhos de Israel” é eminentemente pós-exílico e de origem
sacerdotal, usado para a organização social judia em torno do Segundo Templo.
Os verso iniciais de Êxodo são, portanto,
pseudogenealógicos, e não uma genealogia. Ex 1.1-7 é uma metáfora às
tribos que, após saírem do exílio, deviam comportar-se como uma nação. Os nomes
dos “filhos de Israel” comportam-se como um epônimo para as tribos do
pós-exílio. Tal metáfora pseudogenealógica para a etnogenia israelita é produto
de uma renovação simbólica dos sacerdotes que reorganizam os repatriados e são,
assim, parte integrante do habitus
sacerdotal.
A
retro datação da pseudogenealogia etnogênica em questão assume a função de
coligação das famílias, intencionando criar uma identidade nacional aos
repatriados. O exílio acabou aproximando tribos, grupos heterônomos, que
encontram na saída do exílio e retorno para sua terra natal a gênese de seu
parentesco, a identidade nacional de uma pretensa nação, a israelita. O fato de
a terra da opressão, de onde ocorre a gênese da identidade nacional israelita,
ter passado da Babilônia para o Egito tem explicação na política externa da
Pérsia em oposição ao Egito. Não haveria sentido, já que os Aquemênidas
destituíram o império babilônico, de os ideólogos sacerdotais continuarem se
opondo aos babilônios, mas o Egito possuía uma grande faixa territorial para o
mar que interessava aos persas e, a ideologia sacerdotal corroborou com o
império persa que, por sua vez, legitimava a ação sacerdotal, bem como o
processo de reconstrução da Cidade-Templo. Esse é o fato de que o símbolo
“terra da opressão” seja costumeiramente associado ao território político do
Egito. A história bíblica de uma família que migra para o Egito e, sob
opressão, torna-se a nação de Israel, tem seu nascedouro no retorno dos
repatriados da Babilônia, sendo retroprojetada para os eventos fundantes da
transumância patriarcal. O Egito é inserido como força política contrária aos
interesses persas e, portanto, contra os interesses sacerdotais que reorganizam
Jerusalém.
A
religião, sob os ideólogos sacerdotais, alia-se à política para criar a
etnogenia israelita, identidade nacional que permite notar tribos do norte e do
sul sob a mesma família. Se em Ex 1.1-7 temos uma proposta anterior à ideologia
sectária dos sacerdotes sulistas, vemos que em Ex 1.8 há o esquecimento do nome
de José, notadamente representante do norte e pai das tribos do norte de Efraim
e Manassés. Tal fato mostra um detrimento da imagem nortista que, antes, é responsável
por levar os transumantes para ao Egito e salvá-los da fome. Assim, Ex 1.1-7
tem ideologia anterior à Ex 1.8, trata de uma tentativa de estabelecer uma
identidade entre as diversas tribos repatriadas em busca da etnogenia
israelita. O primeiro, Ex 1.1-7, trata da organização de uma identidade
nacional com base na aproximação dos grupos repatriados, o segundo, Ex 1.8, é
uma percepção sectarista que afasta os grupos do Norte da hegemonia sócio-política vinda dos
sacerdotes sulistas.
A
discussão teológica quanto ao uso do presente trabalho nas comunidades de fé
traz à tona duas temáticas: a relação proximal de ideários religiosos e
políticos, e a perspectiva da tolerância na busca pela construção de uma
identidade.
Os
ideários sacerdotais religiosos, no texto bíblico, refletem que em sua redação
o dado referente à revelação divina não se faz apenas no campo místico ou mesmo
metafísico. A revelação divina ao sacerdote perfaz, antes, o campo
sócio-político deste ideólogo. O sacerdote põe-se a redigir um habitus para a sociedade em que está
inserido, de modo que esta elaboração simbólica remete sua própria ideologia e
percepção da sociedade e da política, agora, autenticado divinamente pelo texto
sacro. Ainda hoje tal comportamento perdura, líderes religiosos que buscam
autenticar seu posicionamento sócio-político elaborando um habitus que implante novos símbolos. É o uso da retórica e da
autoridade religiosa que, para fomentar o posicionamento político da liderança
em questão, age trazendo para si a autoridade divina. Usa-se da divindade como
recurso retórico para a inserção de novos habitus
e símbolos na sociedade em questão. Nas comunidades de fé devemos ter em mente
que o líder é, em si, um ideólogo. E como tal traz em seu discurso sua própria
percepção da sociedade em que está inserido. Sua retórica deve expor sempre sua
proposta humanamente calcada. O seu discurso deve estar sempre ao lado da ética
humana, não de seus próprios interesses. O discurso religioso deve atingir o
ser humano em suas expectativas existenciais. Aos fiéis cabe a hermenêutica dos
ideais de cada líder religioso, sua perspectiva frente à ética humana, e, o uso
do habitus e dos símbolos para
validação e autenticação da ideologia deste líder.
A
concepção da tolerância, como valor de uma comunidade de fé, torna-se condição sine qua non para o desenvolvimento de
uma busca por identidade religiosa, tendo seu alicerce epistemológico no texto
bíblico. Do mesmo modo que uma grande diversidade de culturas foi agrupada como
membros da mesma família, na busca por uma identidade nacional israelita, a
convivência ou tolerância de culturas, povos, etnias, denominações ou religiões
deve ser valor primaz na formação de uma identidade humana. O respeito ao
diferente, ou mesmo a aproximação daquele que diverge da conduta majoritária,
deve orientar a formação de um desenvolvimento saudável para a espécie humana.
Assim, encontramos na gênese da nação israelita, o povo de Deus, o valor da
aceitação do diferente, a supremacia do respeito, a valorização da convivência
como valor fundante da nação divina.
Thiago Barbosa
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