A arte de pensar livremente

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Aqui somos pretensiosos escribas. Nesses pergaminhos virtuais jazem o sangue, o suor e as lágrimas dos que se propõem a pensar com autonomia. (TeHILAT HAKeMAH YIRe'aT YHWH) prov 9,10a

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Memorial de Batalhas - sob as areias e o tempo em Megido.


Memorial de batalhas – Sob as areias e o tempo em Megido
Megido, depois de Jerusalém, possivelmente é uma das localidades mais conhecidas do território de Israel. Parte desse conhecimento se dá devido às produções cinematográficas que usam da histórica cidade para remontar a temática dos últimos dias. A apocalíptica, como movimento literário, é confundida com o próprio livro do apocalipse, fazendo com que esta localidade seja comumente lembrada como o ambiente onde ocorrerá a grandiosa batalha final entre as forças do bem contra sua antagônica oposição, as forças do mal.
Tell el-Mutesellin localiza-se no lado norte da serra do Carmelo e domina o desfiladeiro do vale de Esdrelom, A colina localiza-se a aproximadamente 30 Km de Haifa e a aproximadamente 100 Km de Tel-Aviv, onde se apresenta um dos vales mais férteis de Israel. A cidade de Megido está próxima da rota comercial e militar conhecida por Via Maris e do vale de Jezreel. A localização da cidade permitia o controle de uma das mais importantes rotas militares e comerciais da antiguidade, comandando o panorama do vale de Jezreel. A base econômica era fornecida pelas pequenas vilas deste vale. Pode-se aferir a importância desse sítio arqueológico devido ao fato que, em uma superfície de seis hectares foram encontrados vários restos arqueológicos, sendo um importante centro para estudos da cultura material dos tempos bíblicos e que ao menos 20 cidades, ou 26 cidades, haviam sido construídas neste sítio uma sobre a outra, no período de 5 milênios com ocupação contínua. Chama a atenção os altares sacrificiais, Bamot, e os templos cananeus, bem como o sistema de armazenamento de água que permitiria aos citadinos uma considerável sobre vida quando a cidade estivesse sitiada pelo inimigo.
A atividade de assentamento sempre foi acompanhada por diversos trabalhos de movimentação de terra, nivelação, fortificações, aterros, todos com o uso de entulhos oriundos das construções mais antigas. De igual modo os processos de escavação que envolve a construção de valas, aquedutos, sepulturas ou mesmo canais para drenagens, ambos os processos ocasionam, frequentemente, a mistura de achados mais antigos com os mais recentes. Há também a inconsistência histórica nos processos de ocupação das distintas partes do mesmo sítio. Percepções estas que ocasionaram um maior cuidado com as recentes escavações, sendo um trabalho por vezes moroso e artesanal.
O aprimoramento e detalhamento no uso e estudos das línguas, bem como dos distintos gêneros literários – auxiliam enormemente na identificação das fontes orais e escritas que embasam o texto bíblico atual – igualmente o acurado desenvolvimento dos estudos antropológicos e arqueológicos, metodologicamente sistematizado sobre as línguas, sociedades, culturas, desenvolvimentos históricos, os quais formaram as tradições do antigo Israel. Mesmo em comparação de textos bíblicos com fontes extra bíblicas há coincidências, tanto em aspectos gerais da narrativa, como também em aspectos singulares. “Como todos os pesquisadores têm o mesmo material de fontes à sua disposição, as diferenças nas suas avaliações devem ser metodologicamente fundamentadas, o que fica evidenciado no chamado minimalismo”. Assim, o intérprete deve esmerar-se em entender o contexto específico de cada texto e fazer-lhe justiça em seu processo de interpretação. “Dessa maneira surge um retrato da história de Israel, que muitas vezes se assemelha a um mosaico”.
Em análise pontual sobre as ocorrências da palavra Megido no texto bíblico percebe-se 12 aparições do nome na Bíblia Hebraica, sendo: Js 12:21, 17:11; Jz 1:27, 5:19; 1 Re 4:12, 9:15; 2 Re 9:27, 23:29-30; 1Cr 7:29; 2Cr 35:22; Zc 12:11. Já nos textos neotestamentários há apenas uma ocorrência do termo variante Armagedon, referindo-se à Megido em Ap 16:16.
Josué 12:21 apresenta uma lista de reis derrotados pelos migrantes hebreus, em 17:11; em Juízes 1:27 compilam-se tradições individuais para tomada da terra e em 5:19 temos a coalizão de vários governantes no “cântico de Débora”; em 1Re 4:12 nota-se a importância descritiva das formas de tributação durante o período salomônico, em1Re 9:15 as edificações e fortificações realizadas sob a data do reinado salomônico sejam baseadas em um “circulo vicioso”; em 2Re 9:27 e 23:29-30 remontam a morte de reis do reino do Sul. Acaz(ias) e Josias encontram sua morte no território de Megido.
Em toda a construção da obra Historiográfica-Deuteronomista aponta para Megido, em um período tribal (Josué e Juízes) como grandeza citadina a ser conquistada. Como abordam tradições muito antigas, é possível que ainda não haja na intenção dos produtores textuais a visão de um ambiente citadino fortificado, embora possa notar-se o uso de Megido como centro de patrulha egípcio na transição entre primeiro e segundo milênio. Tal pensamento seria condizente com a abordagem sincrônica, onde os grupos de Josué e Juízes ainda reflitam sobre grupos hapirus, migrantes no ambiente do crescente fértil e que buscam estabelecer-se em um processo de sedentarização, abandonando a transumância característica desse povo.  Já no período dos reis observa-se o processo de fortificação instituída, em maior ou menor grau dependendo do regente observado. Certamente o fato de ter se encontrado grandes estábulos no território de Megido atribui, tradicionalmente, sua elevação em importância ao período salomônico. Já aqui é possível perceber que Megido sempre está envolta por apontamentos de revolta, guerra e morte de reis. O contexto de batalha sempre ocorrendo em seus territórios pode ser explicado pela importância das vias que a circundam na locomoção de exércitos que insistentemente oprimiam os habitantes do Crescente Fértil nos períodos mais remotos (como observado em ação dos egípcios e assírios), passando pelo domínio babilônico, persa, helênico e romano. Todos, sem exceção, utilizam-se das vias que percorrem os arredores de Megido para a locomoção de tropas, transporte bélico e de mantimentos. Assim, no imaginário do autor da Obra historiográfica-deuteronomista está clara a ideia de que Megido é um centro de disputa, tanto em tempos remotos como em períodos contemporâneos. Corroboram com essas perspectivas as descrições dos portões, fortemente adaptados tais como os de Hazor, e sua localização nas colinas, de onde é possível visualizar toda a movimentação nos arredores da cidade desfrutando de sua proteção oriunda de sua localização topográfica privilegiada.
Em 1Cr 1:1 temos uma genealogia que traça uma cronologia etiológica conectando Adão e o evento de retorno do exílio babilônico; em 1Cr 7:29 vê-se que é uma descrição dos filhos de Efraim; em 2Cr 35:22 remete-se à morte do rei Josias. O autor da historiografia-cronista utiliza a não canonização dos textos existentes no intuito de retocar os textos anteriores produzindo uma obra que fala por si mesma, sem necessidade de comentários. “Salvaguardar a unidade religiosa do povo de Deus foi uma das preocupações mais fortemente sentidas durante o período pós-exílico”. Talvez seja essa a força que direciona os retoques como os vistos no relato da morte de Josias em 2Cr 35:22. Esta obra trata de uma exortação à unidade, exaltando laços étnicos e religiosos que unem tradições antes díspares. O Cronista defende títulos e direitos de Jerusalém e sua centralidade como centro religioso, bem como ocorre nos relatos dos reis do Sul, sumamente na linhagem davídica-salomônica.
A passagem de Zc 12:11 é um trecho coeso marcado pela expressão “naquele dia”. Centraliza a cidade de Jerusalém, protegida contra o ataque inimigo e purificada pelo derramamento de espírito de graça e súplica. Aqui o ideário de dor e sofrimento, pranto profundo e desesperança emolduram os acontecimentos que terão como uma das cidades responsáveis Megido. Jerusalém é centralizada em sua importância como capital do reino do Sul e - como templo articulado à corte monarca - de tal povo. O pranto que se ouvirá em Jerusalém é comparado ao pranto que se ouviu no vale de Megido, pontualmente em Hadade-Rimom. Se remetermos o texto ao período dos ptolomeus remontando a batalha de Palaegaza (312 a.C.) e sua consequente volta ao Egito, nesse espaço de tempo houve um grande ataque às fortificações de Jerusalém, um alto recolhimento de despojos, bem como a captura e condução de prisioneiros de guerra para o Egito. Nesse período a cidade de Megido já havia sido destruída pelos assírios, porém o ideário que remonta as mais importantes batalhas de toda essa região bem como a coligação de diversas tribos e mortes de importantes reis do reino do Sul já fazia com que a cidade fosse ligada à ideologia do reino do Sul como sinônimo de contextos relacionados a guerras e batalhas. Ao apontar para Megido, esquece-se de sua destruição, sobressaindo as memórias dos anos em que essa localidade representava uma colina estratégica nas batalhas desse povo. Porém tem-se em mente um período ainda posterior, condizente com os anos de transição entre século I - II a.C., respectivamente coincidindo com o período dos Macabeus. Sabe-se que há reações religiosas à destruição da sociedade judaica, principalmente pelos grupos de dominação ditos “pagãos”, chamando a atenção para o potencial de preservação da identidade do povo por meio da religião, mobilizado sumamente pela dominação imposta e que se articulou com os grandes levantes dos macabeus e ocasionaram ações revolucionarias e sociais de menor porte.
O apocalipse foi escrito pelo fim do reino de Domiciano, em 96 a.C. Traz-nos à memória o objetivo de toda essa história da salvação que é o objeto do Antigo Testamento e do Novo Testamento, também é atual nesse sentido que proclama o alcance cósmico da obra redentora e do reino de Cristo e a esperança de uma nova criação. O texto tradicionalmente é apontado como de autoria joanina, sendo ambientado na região da Ásia Menor, possivelmente tratasse de um cristão de origem judaica. No texto do apocalipse o termo blasfêmia ou blasfemar – Ap 16:16 reflete esse apontamento - é característico, unicamente, daquele que se opõem a Deus. Mitologicamente trata-se de “o poder contrário a Deus”, um domínio global, por assim dizer, que usurpou a legítima dominação de Deus. “Esse poder antagônico a Deus manifesta-se, sobretudo no Cesar romano e na sua adoração divina” Assim, a batalha dos últimos tempos deverá ser realizada em Armagedon, ou seja, Monte de Megido.
A Bíblia não se presta à descrição de eventos. Ela, como produção textual se ocupa do ensino, seu propósito é pedagógico e esta finalidade estende-se às narrativas bíblicas do passado.
 “A memória coletiva representa o conjunto coletivo de memória partilhada pelos indivíduos e, além disso, ela consiste de memória passada a gerações subseqüentes. Memória é o que uma cultura coletivamente carrega de seu passado, enquanto história envolve uma avaliação crítica do passado. Assim sendo, é expressa por meio de imagens partilhadas que personificam uma elaborada rede de moral social, valores e ideais considerados pelos grupos sociais. As interconexões entre as imagens partilhadas, por sua vez, formam e moldam as estruturas sociais (cadres sociaux) da memória coletiva.”
A forma da escrita pode não representar uma ruptura na memória coletiva, ao contrário, remete e reaviva essa memória. A memória tem como constituinte basilar o ensino do presente mediante o passado. Observarmos como a cidade de Megido entra no imaginário do povo bíblico nos mostra como, mesmo uma cidade, traz consigo grandezas marcantes nas memórias de um povo. Nota-se a ênfase no poder social quanto à produção de textos, mas temos que observar atentamente a importância da família em moldar a memória, bem como a monarquia, e outras instituições elaboradoras de ideários, no intuito de ocultar ou imergir memórias coletivas. Megido ganha uma força na cultura popular como recinto de batalha, local de guerras, ambiente de pelejas e mortes, de grandes exércitos e de monarcas do reino do Sul principalmente – quando nos lembramos dos textos aqui abordados.
 “Se aplicarmos estes princípios à memória da maior parte dos personagens bíblicos, vemos que eles são sacramentados em histórias oficiais não simplesmente de acordo com os fatos históricos, mas de acordo com os locais onde suas reputações foram sacramentadas”
O memorial construído e exposto sobre Megido retoma o ideário das batalhas expostas em Josué, das coligações tribais caracterizadas em Juízes, das batalhas e mortes apontadas nos livros dos Reis, a construção de um Deus estatal e o ideário da retribuição exposta em Crônicas, bem como a expectativa do fim dos dias de uma sociedade novamente oprimida por governos helênicos e romanos das obras apocalípticas.
Percebemos a força do movimento social que busca a manutenção de uma identidade judaica. É no período dos Macabeus que as ruínas de Megido retornam à memória coletiva/social de um povo que vê na força da batalha uma esperança de resistência aos opressores romanos. Essa cidade, hoje em ruínas, que passo a passo é redescoberta pela pesquisa arqueológica, já nos textos bíblicos aponta para um povo que é uma grandeza difusa, mas que em Megido encontra as reconstruções das batalhas e disputas que ilustram pessoas sedentas pela liberdade. Por vezes tal liberdade encontra-se refém das lutas, guerras, sangue e suor de uma grandeza social que se constrói sob um olhar para as fortificações de Megido. Com suas origens fundantes mantidas, com sua identidade sócio-religiosa, que conhecerá a liberdade em um futuro próximo, ergue-se o povo do Crescente Fértil.
Eis aí o convite aos latino-americanos, revisitar suas histórias fundantes, ter à memória a identidade de nossos antepassados pré-coloniais, e ter na religião um instrumento de identidade, luta e esperança para que venham os dias de liberdade.

Thiago Barbosa

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