Memorial de batalhas – Sob as areias e o
tempo em Megido
Megido, depois de Jerusalém, possivelmente é
uma das localidades mais conhecidas do território de Israel. Parte desse
conhecimento se dá devido às produções cinematográficas que usam da histórica cidade
para remontar a temática dos últimos dias. A apocalíptica, como movimento
literário, é confundida com o próprio livro do apocalipse, fazendo com que esta
localidade seja comumente lembrada como o ambiente onde ocorrerá a grandiosa
batalha final entre as forças do bem contra sua antagônica oposição, as forças
do mal.
Tell
el-Mutesellin localiza-se no lado norte da serra do Carmelo e
domina o desfiladeiro do vale de Esdrelom, A colina localiza-se a
aproximadamente 30 Km de Haifa e a aproximadamente 100 Km de Tel-Aviv, onde se
apresenta um dos vales mais férteis de Israel. A cidade de Megido está próxima
da rota comercial e militar conhecida por Via Maris e do vale de Jezreel. A
localização da cidade permitia o controle de uma das mais importantes rotas militares
e comerciais da antiguidade, comandando o panorama do vale de Jezreel. A base
econômica era fornecida pelas pequenas vilas deste vale. Pode-se aferir a
importância desse sítio arqueológico devido ao fato que, em
uma superfície de seis hectares foram encontrados vários restos arqueológicos,
sendo um importante centro para estudos da cultura material dos tempos bíblicos
e que ao menos 20 cidades, ou 26 cidades, haviam sido construídas neste sítio
uma sobre a outra, no período de 5 milênios com ocupação contínua. Chama a
atenção os altares sacrificiais, Bamot,
e os templos cananeus, bem como o sistema de armazenamento de água que
permitiria aos citadinos uma considerável sobre vida quando a cidade estivesse
sitiada pelo inimigo.
A atividade de assentamento sempre foi
acompanhada por diversos trabalhos de movimentação de terra, nivelação,
fortificações, aterros, todos com o uso de entulhos oriundos das construções
mais antigas. De igual modo os processos de escavação que envolve a construção
de valas, aquedutos, sepulturas ou mesmo canais para drenagens, ambos os
processos ocasionam, frequentemente, a mistura de achados mais antigos com os
mais recentes. Há também a inconsistência histórica nos processos de ocupação
das distintas partes do mesmo sítio. Percepções estas que ocasionaram um maior
cuidado com as recentes escavações, sendo um trabalho por vezes moroso e
artesanal.
O aprimoramento e detalhamento no uso e
estudos das línguas, bem como dos distintos gêneros literários – auxiliam
enormemente na identificação das fontes orais e escritas que embasam o texto
bíblico atual – igualmente o acurado desenvolvimento dos estudos antropológicos
e arqueológicos, metodologicamente sistematizado sobre as línguas, sociedades,
culturas, desenvolvimentos históricos, os quais formaram as tradições do antigo
Israel. Mesmo em comparação de textos bíblicos com fontes extra bíblicas há
coincidências, tanto em aspectos gerais da narrativa, como também em aspectos
singulares. “Como todos os pesquisadores têm o mesmo material de fontes à sua
disposição, as diferenças nas suas avaliações devem ser metodologicamente
fundamentadas, o que fica evidenciado no chamado minimalismo”. Assim, o
intérprete deve esmerar-se em entender o contexto específico de cada texto e
fazer-lhe justiça em seu processo de interpretação. “Dessa maneira surge um
retrato da história de Israel, que muitas vezes se assemelha a um mosaico”.
Em análise pontual sobre as ocorrências da
palavra Megido no texto bíblico percebe-se 12 aparições do nome na Bíblia
Hebraica, sendo: Js 12:21, 17:11; Jz 1:27, 5:19; 1 Re 4:12, 9:15; 2 Re 9:27,
23:29-30; 1Cr 7:29; 2Cr 35:22; Zc 12:11. Já nos textos neotestamentários há
apenas uma ocorrência do termo variante Armagedon, referindo-se à Megido em Ap
16:16.
Josué 12:21 apresenta uma lista de reis
derrotados pelos migrantes hebreus, em 17:11; em Juízes 1:27 compilam-se
tradições individuais para tomada da terra e em 5:19 temos a coalizão de vários
governantes no “cântico de Débora”; em 1Re 4:12 nota-se a importância
descritiva das formas de tributação durante o período salomônico, em1Re 9:15 as
edificações e fortificações realizadas sob a data do reinado salomônico sejam
baseadas em um “circulo vicioso”; em 2Re 9:27 e 23:29-30 remontam a morte de
reis do reino do Sul. Acaz(ias) e Josias encontram sua morte no território de
Megido.
Em toda a construção da obra
Historiográfica-Deuteronomista aponta para Megido, em um período tribal (Josué
e Juízes) como grandeza citadina a ser conquistada. Como abordam tradições
muito antigas, é possível que ainda não haja na intenção dos produtores
textuais a visão de um ambiente
citadino fortificado, embora possa notar-se o uso de Megido como centro de
patrulha egípcio na transição entre primeiro e segundo milênio. Tal pensamento
seria condizente com a abordagem sincrônica, onde os grupos de Josué e Juízes
ainda reflitam sobre grupos hapirus,
migrantes no ambiente do crescente fértil e que buscam estabelecer-se em um
processo de sedentarização, abandonando a transumância característica desse
povo. Já no período dos reis observa-se
o processo de fortificação instituída, em maior ou menor grau dependendo do
regente observado. Certamente o fato de ter se encontrado grandes estábulos no
território de Megido atribui, tradicionalmente, sua elevação em importância ao
período salomônico. Já aqui é possível perceber que Megido sempre está envolta
por apontamentos de revolta, guerra e morte de reis. O contexto de batalha
sempre ocorrendo em seus territórios pode ser explicado pela importância das
vias que a circundam na locomoção de exércitos que insistentemente oprimiam os
habitantes do Crescente Fértil nos períodos mais remotos (como observado em
ação dos egípcios e assírios), passando pelo domínio babilônico, persa,
helênico e romano. Todos, sem exceção, utilizam-se das vias que percorrem os
arredores de Megido para a locomoção de tropas, transporte bélico e de
mantimentos. Assim, no imaginário do autor da Obra historiográfica-deuteronomista
está clara a ideia de que Megido é um centro de disputa, tanto em tempos
remotos como em períodos contemporâneos. Corroboram com essas perspectivas as
descrições dos portões, fortemente adaptados tais como os de Hazor, e sua
localização nas colinas, de onde é possível visualizar toda a movimentação nos
arredores da cidade desfrutando de sua proteção oriunda de sua localização
topográfica privilegiada.
Em 1Cr 1:1 temos uma genealogia que traça uma
cronologia etiológica conectando Adão e o evento de retorno do exílio
babilônico; em 1Cr 7:29 vê-se que é uma descrição dos filhos de Efraim; em 2Cr
35:22 remete-se à morte do rei
Josias.
O autor da historiografia-cronista utiliza a não canonização dos textos
existentes no intuito de retocar os textos anteriores produzindo uma obra que
fala por si mesma, sem necessidade de comentários. “Salvaguardar a unidade
religiosa do povo de Deus foi uma das preocupações mais fortemente sentidas
durante o período pós-exílico”. Talvez seja essa a força que direciona os
retoques como os vistos no relato da morte de Josias em 2Cr 35:22. Esta obra
trata de uma exortação à unidade, exaltando laços étnicos e religiosos que unem
tradições antes díspares. O Cronista defende títulos e direitos de Jerusalém e
sua centralidade como centro religioso, bem como ocorre nos relatos dos reis do
Sul, sumamente na linhagem davídica-salomônica.
A
passagem de Zc 12:11 é um trecho coeso marcado pela expressão “naquele dia”.
Centraliza a cidade de Jerusalém, protegida contra o ataque inimigo e
purificada pelo derramamento de espírito
de graça e súplica. Aqui o ideário de dor e sofrimento, pranto profundo e
desesperança emolduram os acontecimentos que terão como uma das cidades
responsáveis Megido. Jerusalém é centralizada em sua importância como capital
do reino do Sul e - como templo articulado à corte monarca - de tal povo. O
pranto que se ouvirá em Jerusalém é comparado ao pranto que se ouviu no vale de
Megido, pontualmente em Hadade-Rimom. Se remetermos o texto ao período dos ptolomeus
remontando a batalha de Palaegaza (312
a.C.) e sua consequente volta ao Egito, nesse espaço de tempo houve um grande
ataque às fortificações de Jerusalém, um alto recolhimento de despojos, bem
como a captura e condução de prisioneiros de guerra para o Egito. Nesse período
a cidade de Megido já havia sido destruída pelos assírios, porém o ideário que
remonta as mais importantes batalhas de toda essa região bem como a coligação
de diversas tribos e mortes de importantes reis do reino do Sul já fazia com
que a cidade fosse ligada à ideologia do reino do Sul como sinônimo de
contextos relacionados a guerras e batalhas. Ao apontar para Megido, esquece-se
de sua destruição, sobressaindo as memórias dos anos em que essa localidade representava
uma colina estratégica nas batalhas desse povo. Porém tem-se em mente um período
ainda posterior, condizente com os anos de transição entre século I - II a.C.,
respectivamente coincidindo com o período dos Macabeus. Sabe-se que há reações
religiosas à destruição da sociedade judaica, principalmente pelos grupos de
dominação ditos “pagãos”, chamando a atenção para o potencial de preservação da
identidade do povo por meio da religião, mobilizado sumamente pela dominação
imposta e que se articulou com os grandes levantes dos macabeus e ocasionaram
ações revolucionarias e sociais de menor porte.
O
apocalipse foi escrito pelo fim do reino de Domiciano, em 96 a.C. Traz-nos à
memória o objetivo de toda essa história da salvação que é o objeto do Antigo
Testamento e do Novo Testamento, também é atual nesse sentido que proclama o
alcance cósmico da obra redentora e do reino de Cristo e a esperança de uma
nova criação. O texto tradicionalmente é apontado como de autoria joanina,
sendo ambientado na região da Ásia Menor, possivelmente tratasse de um cristão
de origem judaica. No texto do apocalipse o termo blasfêmia ou blasfemar – Ap 16:16 reflete esse
apontamento - é característico, unicamente, daquele que se opõem a
Deus. Mitologicamente trata-se de “o poder contrário a Deus”, um domínio
global, por assim dizer, que usurpou a legítima dominação de Deus. “Esse poder
antagônico a Deus manifesta-se, sobretudo no Cesar romano e na sua adoração
divina” Assim, a batalha dos últimos tempos deverá ser realizada em Armagedon, ou seja, Monte
de Megido.
A Bíblia não se presta à
descrição de eventos. Ela, como produção textual se ocupa do ensino, seu
propósito é pedagógico e esta finalidade estende-se às narrativas bíblicas do
passado.
“A memória
coletiva representa o conjunto coletivo de memória partilhada pelos indivíduos
e, além disso, ela consiste de memória passada a gerações subseqüentes. Memória
é o que uma cultura coletivamente carrega de seu passado, enquanto história
envolve uma avaliação crítica do passado. Assim sendo, é expressa por meio de
imagens partilhadas que personificam uma elaborada rede de moral social,
valores e ideais considerados pelos grupos sociais. As interconexões entre as
imagens partilhadas, por sua vez, formam e moldam as estruturas sociais (cadres
sociaux) da memória coletiva.”
A forma da escrita pode não
representar uma ruptura na memória coletiva, ao contrário, remete e reaviva
essa memória. A memória tem como constituinte basilar o ensino do presente mediante
o passado. Observarmos como a cidade de Megido entra no imaginário do povo
bíblico nos mostra como, mesmo uma cidade, traz consigo grandezas marcantes nas
memórias de um povo. Nota-se a ênfase no poder social quanto à produção de
textos, mas temos que observar atentamente a importância da família em moldar a
memória, bem como a monarquia, e outras instituições elaboradoras de ideários,
no intuito de ocultar ou imergir memórias coletivas. Megido ganha uma força na
cultura popular como recinto de batalha, local de guerras, ambiente de pelejas
e mortes, de grandes exércitos e de monarcas do reino do Sul principalmente –
quando nos lembramos dos textos aqui abordados.
“Se aplicarmos estes princípios à memória da
maior parte dos personagens bíblicos, vemos que eles são sacramentados em
histórias oficiais não simplesmente de acordo com os fatos históricos, mas de
acordo com os locais onde suas reputações foram sacramentadas”
O memorial construído e exposto sobre Megido retoma o ideário das batalhas
expostas em Josué, das coligações tribais caracterizadas em Juízes, das
batalhas e mortes apontadas nos livros dos Reis, a construção de um Deus
estatal e o ideário da retribuição exposta em Crônicas, bem como a expectativa
do fim dos dias de uma sociedade novamente oprimida por governos helênicos e
romanos das obras apocalípticas.
Percebemos a força do movimento social que busca a manutenção de uma
identidade judaica. É no período dos Macabeus que as ruínas de Megido retornam
à memória coletiva/social de um povo que vê na força da batalha uma esperança
de resistência aos opressores romanos. Essa cidade, hoje em ruínas, que passo a
passo é redescoberta pela pesquisa arqueológica, já nos textos bíblicos aponta
para um povo que é uma grandeza difusa, mas que em Megido encontra as
reconstruções das batalhas e disputas que ilustram pessoas sedentas pela
liberdade. Por vezes tal liberdade encontra-se refém das lutas, guerras, sangue
e suor de uma grandeza social que se constrói sob um olhar para as
fortificações de Megido. Com suas origens fundantes mantidas, com sua
identidade sócio-religiosa, que conhecerá a liberdade em um futuro próximo,
ergue-se o povo do Crescente Fértil.
Eis aí o convite aos latino-americanos, revisitar suas histórias fundantes,
ter à memória a identidade de nossos antepassados pré-coloniais, e ter na
religião um instrumento de identidade, luta e esperança para que venham os dias
de liberdade.
Thiago Barbosa
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