A arte de pensar livremente

A arte de pensar livremente
Aqui somos pretensiosos escribas. Nesses pergaminhos virtuais jazem o sangue, o suor e as lágrimas dos que se propõem a pensar com autonomia. (TeHILAT HAKeMAH YIRe'aT YHWH) prov 9,10a

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Super-Bonder - uma percepção histórico-social dos versos iniciais do livro de êxodo


Super-Bonder® - uma percepção histórico-social dos versos iniciais do livro de êxodo
O texto tradicionalmente trata da entrada dos “filhos de Israel” no Egito, bem como de seu pretenso crescimento populacional.
Ex 1.1-7 trata então de um texto de tradição sacerdotal. “Tem como interesse evidente a acentuação de assuntos sacerdotais e cultuais, traz numerosos dados cronológicos e outros semelhantes”, como a lista de epônimos tribais que entraram na terra da opressão. Busca-se a datação destes escritos a partir do século VI a.E.c., este é um século de “reviravolta, não somente para Israel, mas para grande parte do mundo antigo”. Reconhecido por período axial.
A religião monoteísta é tida como o emergir da revolução do período axial - raciocinando por meio de mitos, e não historicamente - a Bíblia apresenta um monoteísmo desde as origens da história de Israel, imutando tal história no tempo. Esta é a perspectiva que se desenvolve no presente trabalho, o uso histórico-social da lista de nomes em Ex 1.1-7, tendo como alicerce epistemológico a história axial do período persa e, portanto, a organização nacional dos repatriados e as discussões ideológicas sacerdotais no período do império Aquemênida.
O período axial é marcado pela emergência de uma série de inovações – símbolos personificados de tendências gerais nas respectivas comunidades – tendo então, protagonistas e tendências, diferenças respectivas à cultura, de igual modo especificidades nas tradições, tendências culturais, com diferentes inovações que vão do racionalismo à ética. Ele é tido como meta-histórico por alguns historiadores que alegam o risco se não for enquadrado em condições precisas. “Esse é um traço comum do período da emergência de elites intelectuais que não são da organização do poder, como sempre fora antes, mas representam seu espírito crítico, de oposição e de superação”
O estudo da genealogia é uma busca pelo sentido das origens ou linhagens de grupos, bem como da sua evolução e disseminação. É uma vertente auxiliar do estudo histórico, por intermédio de um levantamento sistemático de seus antepassados, locais onde nasceram, viveram, trabalharam, produziram, cultuaram, morreram, ou ainda, foram sepultados, a genealogia utiliza-se das relações interpessoais para traçar condutas e características dos grupos em estudo.
Isso é característico quando se observa as ligações horizontais sendo estabelecidas, principalmente sob o uso de genealogias onde figuras, originalmente isoladas, tornam-se aparentadas deixando evidente o uso da ideologia dos redatores nesse processo de composição. Possivelmente esse ideário reforça a importância da inserção de relatos genealógicos durante todo o texto bíblico. São tais textos que constroem as relações de proximidade entre leitores e escritores, grupos dominantes e dominados.
Na Bíblia Hebraica as genealogias são pontuadas pelas expressões “estas são as gerações de” (וְאֵ֙לֶּה֙ תּוֹלְדֹ֣ת) e “estes são os nomes” (וְאֵ֗לֶּה שְׁמוֹת֙) como fórmulas de início ou abertura. A expressão וְאֵ֗לֶּה שְׁמוֹת֙ inicia o livro de Êxodo, arremete à lista de filhos oriundos de Jacó/Israel desde Gênesis 46, assim observa-se uma linearidade entre os dois livros e os ideais que são construídos e transmitidos.
O termo ‘filhos de Israel’ é a forma usual que se refere àqueles que são provenientes de Israel. “A referência, pela raiz, de ‘filhos’ ao descendente biológico, torna-se uma metáfora extensiva para descrever grupos de pessoas, de acordo com determinadas funções ou características comuns”. Há, portanto, uma tendência de se relacionar grupos sociais, inclusive em ampla escala, como grupos aparentados provenientes de ancestrais epônimos, fazendo com que tais grupos tornem-se parentes. Assim, ‘filhos de Israel’ é adaptado ao estratagema pseudogenealógico de descendência comum ao ancestral Jacó/Israel. Posteriormente todos os líderes tribais são de certa forma, descendentes de Jacó/Israel.
Os nomes dos filhos de Israel condizendo com os nomes das tribos configuram o uso das expressões como epônimos. Sendo assim é recorrente a temática de que os descendentes desses patriarcas são coerdeiros da aliança, não deviam se desentender ou lutar entre si, o próprio fratricídio ganha ares de abominação desde o Gênesis. Todos os descendentes de Jacó/Israel são irmãos, obrigando a uma conduta de lealdade. Tal argumentação ganha força ao perceber adiante as aproximações quanto ao javismo e ao templo sob o ideário pós-exílico.
Também se vê que a reconstrução genealógica e a organização geográfica são, sobretudo, símbolos ideológicos do habitus sacerdotal. Age como controle mental e cognoscitivo, sem dúvida o século VI a.E.c. “se põe em função de uma esperada retomada ‘nacional’; ou seja, esse é o contexto pelo notável interesse pelo passado dos sacerdotes no pós-exílio. Esses acréscimos caracterizam a deportação da elite judaica sacerdotal e dos escribas para a Babilônia. Evidencia-se a aproximação do termo genérico terra da opressão ao império babilônico. Esse ideário é responsável pela fomentação, na elite, de instrumentos ideológicos para um projeto de reescrita do passado nacional, onde, o sentido e a confiança na refundação estivessem projetados.
Nota-se uma construção de uma única narrativa relativamente contínua para o passado de um povo único, bem como de uma terra única. A ação sacerdotal constrói, remetendo a uma experiência do passado, a terra tradicional dada por Deus, a identidade familiar que aproxima tribos díspares – minimizando conflitos e, consequentemente ações militares persas – propondo um ritual comunal ao redor de um texto sagrado. A Torá, o Pentateuco nas tradições sacerdotais, é o modelo de identidade israelita que enfoca a prática religiosa – para legisladores religiosos – que marcam a cultura dessa identidade criada.
O texto trata de um uma redação orientada pela ideologia sacerdotal que encontra seu nascedouro no período pós-exílico, justamente no período de ação dos imperadores persas sobre o Crescente Fértil. Estes versos estão cronologicamente próximos de eventos cruciais para a história da nação israelita, tais como: o fechamento da elaboração da Lei, o final do movimento profético, o fim da historiografia deuteronomista, o sacerdócio jerosolimita em ascenção ao poder, e a identificação nacional dos povos que perfaziam tal ambiente geográfico com maior ênfase no aspecto religioso que político.
Quanto à posição no cânon veterotestamentário, percebemos que o texto presta-se à junção de propostas presentes nos livros de Gênesis e de Êxodo. Ao retomar a lista de nomes exposta em Gn 46.8 o redator de Ex 1.1-7 imprime no leitor a leitura linear e continuada dos dois livros. O leitor transita no arranjo canônico quase sem perceber a grande ruptura literária que há entre tais textos. Os versos em questão, quanto ao arranjo no cânon, funcionam como forte junção entre ambos os textos. A Super Bonder® é um produto da empresa Henkel à base de cianocrialato3 e é bastante utilizado como colas instantâneas de ampla utilidade. No Brasil a cola da marca Super Bonder® tornou-se sinônimo de colas instantâneas. O título do presente trabalho retoma esse termo denotando a forte linearidade dos versos que funcionam como uma cola instantânea, Super Bonder®, que enviesa a percepção do leitor para uma continuidade entre Gn-Ex.
O período histórico é condizente com o período axial – pela emergência de novos simbolismos e tendências gerais na comunidade da época – sendo tal perspectiva que alicerça Ex 1.1-7 junto ao período dos imperadores persas, quando acontece a organização dos repatriados, bem como as discussões ideológicas sacerdotais. Nesses versos há uma junção entre dois relatos etnogênicos da nação israelita. A nação oriunda da transumância dos patriarcas bíblicos, e a nação que é oriunda dos trabalhos forçados e dos pesados tributos na terra da opressão; ambos os relatos etnogênicos são expostos, tendo como fio condutor, a lista de nomes em Ex 1.1-7.
Notam-se também duas fórmulas genealógicas presentes na Bíblia Hebraica, “estas são as gerações de” e “estes são os nomes”, sendo que em Ex 1.1-7 está presente à fórmula “estes são os nomes”. Se tal termo ocorre em Gn 46.8 e Ex 1.1 trata-se de uma aproximação, ou tentativa de aproximação, dos redatores sacerdotais javistas do Norte com os ideólogos do Sul. O que impossibilitaria, por si só, a datação tardia proposta pelos pesquisadores mais tradicionais. Continuando, o próprio termo “filhos de Israel” é eminentemente pós-exílico e de origem sacerdotal, usado para a organização social judia em torno do Segundo Templo. Os verso iniciais de Êxodo são, portanto,  pseudogenealógicos, e não uma genealogia. Ex 1.1-7 é uma metáfora às tribos que, após saírem do exílio, deviam comportar-se como uma nação. Os nomes dos “filhos de Israel” comportam-se como um epônimo para as tribos do pós-exílio. Tal metáfora pseudogenealógica para a etnogenia israelita é produto de uma renovação simbólica dos sacerdotes que reorganizam os repatriados e são, assim, parte integrante do habitus sacerdotal.
A retro datação da pseudogenealogia etnogênica em questão assume a função de coligação das famílias, intencionando criar uma identidade nacional aos repatriados. O exílio acabou aproximando tribos, grupos heterônomos, que encontram na saída do exílio e retorno para sua terra natal a gênese de seu parentesco, a identidade nacional de uma pretensa nação, a israelita. O fato de a terra da opressão, de onde ocorre a gênese da identidade nacional israelita, ter passado da Babilônia para o Egito tem explicação na política externa da Pérsia em oposição ao Egito. Não haveria sentido, já que os Aquemênidas destituíram o império babilônico, de os ideólogos sacerdotais continuarem se opondo aos babilônios, mas o Egito possuía uma grande faixa territorial para o mar que interessava aos persas e, a ideologia sacerdotal corroborou com o império persa que, por sua vez, legitimava a ação sacerdotal, bem como o processo de reconstrução da Cidade-Templo. Esse é o fato de que o símbolo “terra da opressão” seja costumeiramente associado ao território político do Egito. A história bíblica de uma família que migra para o Egito e, sob opressão, torna-se a nação de Israel, tem seu nascedouro no retorno dos repatriados da Babilônia, sendo retroprojetada para os eventos fundantes da transumância patriarcal. O Egito é inserido como força política contrária aos interesses persas e, portanto, contra os interesses sacerdotais que reorganizam Jerusalém.
A religião, sob os ideólogos sacerdotais, alia-se à política para criar a etnogenia israelita, identidade nacional que permite notar tribos do norte e do sul sob a mesma família. Se em Ex 1.1-7 temos uma proposta anterior à ideologia sectária dos sacerdotes sulistas, vemos que em Ex 1.8 há o esquecimento do nome de José, notadamente representante do norte e pai das tribos do norte de Efraim e Manassés. Tal fato mostra um detrimento da imagem nortista que, antes, é responsável por levar os transumantes para ao Egito e salvá-los da fome. Assim, Ex 1.1-7 tem ideologia anterior à Ex 1.8, trata de uma tentativa de estabelecer uma identidade entre as diversas tribos repatriadas em busca da etnogenia israelita. O primeiro, Ex 1.1-7, trata da organização de uma identidade nacional com base na aproximação dos grupos repatriados, o segundo, Ex 1.8, é uma percepção sectarista que afasta os grupos do Norte  da hegemonia sócio-política vinda dos sacerdotes sulistas.
A discussão teológica quanto ao uso do presente trabalho nas comunidades de fé traz à tona duas temáticas: a relação proximal de ideários religiosos e políticos, e a perspectiva da tolerância na busca pela construção de uma identidade.
Os ideários sacerdotais religiosos, no texto bíblico, refletem que em sua redação o dado referente à revelação divina não se faz apenas no campo místico ou mesmo metafísico. A revelação divina ao sacerdote perfaz, antes, o campo sócio-político deste ideólogo. O sacerdote põe-se a redigir um habitus para a sociedade em que está inserido, de modo que esta elaboração simbólica remete sua própria ideologia e percepção da sociedade e da política, agora, autenticado divinamente pelo texto sacro. Ainda hoje tal comportamento perdura, líderes religiosos que buscam autenticar seu posicionamento sócio-político elaborando um habitus que implante novos símbolos. É o uso da retórica e da autoridade religiosa que, para fomentar o posicionamento político da liderança em questão, age trazendo para si a autoridade divina. Usa-se da divindade como recurso retórico para a inserção de novos habitus e símbolos na sociedade em questão. Nas comunidades de fé devemos ter em mente que o líder é, em si, um ideólogo. E como tal traz em seu discurso sua própria percepção da sociedade em que está inserido. Sua retórica deve expor sempre sua proposta humanamente calcada. O seu discurso deve estar sempre ao lado da ética humana, não de seus próprios interesses. O discurso religioso deve atingir o ser humano em suas expectativas existenciais. Aos fiéis cabe a hermenêutica dos ideais de cada líder religioso, sua perspectiva frente à ética humana, e, o uso do habitus e dos símbolos para validação e autenticação da ideologia deste líder.
A concepção da tolerância, como valor de uma comunidade de fé, torna-se condição sine qua non para o desenvolvimento de uma busca por identidade religiosa, tendo seu alicerce epistemológico no texto bíblico. Do mesmo modo que uma grande diversidade de culturas foi agrupada como membros da mesma família, na busca por uma identidade nacional israelita, a convivência ou tolerância de culturas, povos, etnias, denominações ou religiões deve ser valor primaz na formação de uma identidade humana. O respeito ao diferente, ou mesmo a aproximação daquele que diverge da conduta majoritária, deve orientar a formação de um desenvolvimento saudável para a espécie humana. Assim, encontramos na gênese da nação israelita, o povo de Deus, o valor da aceitação do diferente, a supremacia do respeito, a valorização da convivência como valor fundante da nação divina.

Thiago Barbosa

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Memorial de Batalhas - sob as areias e o tempo em Megido.


Memorial de batalhas – Sob as areias e o tempo em Megido
Megido, depois de Jerusalém, possivelmente é uma das localidades mais conhecidas do território de Israel. Parte desse conhecimento se dá devido às produções cinematográficas que usam da histórica cidade para remontar a temática dos últimos dias. A apocalíptica, como movimento literário, é confundida com o próprio livro do apocalipse, fazendo com que esta localidade seja comumente lembrada como o ambiente onde ocorrerá a grandiosa batalha final entre as forças do bem contra sua antagônica oposição, as forças do mal.
Tell el-Mutesellin localiza-se no lado norte da serra do Carmelo e domina o desfiladeiro do vale de Esdrelom, A colina localiza-se a aproximadamente 30 Km de Haifa e a aproximadamente 100 Km de Tel-Aviv, onde se apresenta um dos vales mais férteis de Israel. A cidade de Megido está próxima da rota comercial e militar conhecida por Via Maris e do vale de Jezreel. A localização da cidade permitia o controle de uma das mais importantes rotas militares e comerciais da antiguidade, comandando o panorama do vale de Jezreel. A base econômica era fornecida pelas pequenas vilas deste vale. Pode-se aferir a importância desse sítio arqueológico devido ao fato que, em uma superfície de seis hectares foram encontrados vários restos arqueológicos, sendo um importante centro para estudos da cultura material dos tempos bíblicos e que ao menos 20 cidades, ou 26 cidades, haviam sido construídas neste sítio uma sobre a outra, no período de 5 milênios com ocupação contínua. Chama a atenção os altares sacrificiais, Bamot, e os templos cananeus, bem como o sistema de armazenamento de água que permitiria aos citadinos uma considerável sobre vida quando a cidade estivesse sitiada pelo inimigo.
A atividade de assentamento sempre foi acompanhada por diversos trabalhos de movimentação de terra, nivelação, fortificações, aterros, todos com o uso de entulhos oriundos das construções mais antigas. De igual modo os processos de escavação que envolve a construção de valas, aquedutos, sepulturas ou mesmo canais para drenagens, ambos os processos ocasionam, frequentemente, a mistura de achados mais antigos com os mais recentes. Há também a inconsistência histórica nos processos de ocupação das distintas partes do mesmo sítio. Percepções estas que ocasionaram um maior cuidado com as recentes escavações, sendo um trabalho por vezes moroso e artesanal.
O aprimoramento e detalhamento no uso e estudos das línguas, bem como dos distintos gêneros literários – auxiliam enormemente na identificação das fontes orais e escritas que embasam o texto bíblico atual – igualmente o acurado desenvolvimento dos estudos antropológicos e arqueológicos, metodologicamente sistematizado sobre as línguas, sociedades, culturas, desenvolvimentos históricos, os quais formaram as tradições do antigo Israel. Mesmo em comparação de textos bíblicos com fontes extra bíblicas há coincidências, tanto em aspectos gerais da narrativa, como também em aspectos singulares. “Como todos os pesquisadores têm o mesmo material de fontes à sua disposição, as diferenças nas suas avaliações devem ser metodologicamente fundamentadas, o que fica evidenciado no chamado minimalismo”. Assim, o intérprete deve esmerar-se em entender o contexto específico de cada texto e fazer-lhe justiça em seu processo de interpretação. “Dessa maneira surge um retrato da história de Israel, que muitas vezes se assemelha a um mosaico”.
Em análise pontual sobre as ocorrências da palavra Megido no texto bíblico percebe-se 12 aparições do nome na Bíblia Hebraica, sendo: Js 12:21, 17:11; Jz 1:27, 5:19; 1 Re 4:12, 9:15; 2 Re 9:27, 23:29-30; 1Cr 7:29; 2Cr 35:22; Zc 12:11. Já nos textos neotestamentários há apenas uma ocorrência do termo variante Armagedon, referindo-se à Megido em Ap 16:16.
Josué 12:21 apresenta uma lista de reis derrotados pelos migrantes hebreus, em 17:11; em Juízes 1:27 compilam-se tradições individuais para tomada da terra e em 5:19 temos a coalizão de vários governantes no “cântico de Débora”; em 1Re 4:12 nota-se a importância descritiva das formas de tributação durante o período salomônico, em1Re 9:15 as edificações e fortificações realizadas sob a data do reinado salomônico sejam baseadas em um “circulo vicioso”; em 2Re 9:27 e 23:29-30 remontam a morte de reis do reino do Sul. Acaz(ias) e Josias encontram sua morte no território de Megido.
Em toda a construção da obra Historiográfica-Deuteronomista aponta para Megido, em um período tribal (Josué e Juízes) como grandeza citadina a ser conquistada. Como abordam tradições muito antigas, é possível que ainda não haja na intenção dos produtores textuais a visão de um ambiente citadino fortificado, embora possa notar-se o uso de Megido como centro de patrulha egípcio na transição entre primeiro e segundo milênio. Tal pensamento seria condizente com a abordagem sincrônica, onde os grupos de Josué e Juízes ainda reflitam sobre grupos hapirus, migrantes no ambiente do crescente fértil e que buscam estabelecer-se em um processo de sedentarização, abandonando a transumância característica desse povo.  Já no período dos reis observa-se o processo de fortificação instituída, em maior ou menor grau dependendo do regente observado. Certamente o fato de ter se encontrado grandes estábulos no território de Megido atribui, tradicionalmente, sua elevação em importância ao período salomônico. Já aqui é possível perceber que Megido sempre está envolta por apontamentos de revolta, guerra e morte de reis. O contexto de batalha sempre ocorrendo em seus territórios pode ser explicado pela importância das vias que a circundam na locomoção de exércitos que insistentemente oprimiam os habitantes do Crescente Fértil nos períodos mais remotos (como observado em ação dos egípcios e assírios), passando pelo domínio babilônico, persa, helênico e romano. Todos, sem exceção, utilizam-se das vias que percorrem os arredores de Megido para a locomoção de tropas, transporte bélico e de mantimentos. Assim, no imaginário do autor da Obra historiográfica-deuteronomista está clara a ideia de que Megido é um centro de disputa, tanto em tempos remotos como em períodos contemporâneos. Corroboram com essas perspectivas as descrições dos portões, fortemente adaptados tais como os de Hazor, e sua localização nas colinas, de onde é possível visualizar toda a movimentação nos arredores da cidade desfrutando de sua proteção oriunda de sua localização topográfica privilegiada.
Em 1Cr 1:1 temos uma genealogia que traça uma cronologia etiológica conectando Adão e o evento de retorno do exílio babilônico; em 1Cr 7:29 vê-se que é uma descrição dos filhos de Efraim; em 2Cr 35:22 remete-se à morte do rei Josias. O autor da historiografia-cronista utiliza a não canonização dos textos existentes no intuito de retocar os textos anteriores produzindo uma obra que fala por si mesma, sem necessidade de comentários. “Salvaguardar a unidade religiosa do povo de Deus foi uma das preocupações mais fortemente sentidas durante o período pós-exílico”. Talvez seja essa a força que direciona os retoques como os vistos no relato da morte de Josias em 2Cr 35:22. Esta obra trata de uma exortação à unidade, exaltando laços étnicos e religiosos que unem tradições antes díspares. O Cronista defende títulos e direitos de Jerusalém e sua centralidade como centro religioso, bem como ocorre nos relatos dos reis do Sul, sumamente na linhagem davídica-salomônica.
A passagem de Zc 12:11 é um trecho coeso marcado pela expressão “naquele dia”. Centraliza a cidade de Jerusalém, protegida contra o ataque inimigo e purificada pelo derramamento de espírito de graça e súplica. Aqui o ideário de dor e sofrimento, pranto profundo e desesperança emolduram os acontecimentos que terão como uma das cidades responsáveis Megido. Jerusalém é centralizada em sua importância como capital do reino do Sul e - como templo articulado à corte monarca - de tal povo. O pranto que se ouvirá em Jerusalém é comparado ao pranto que se ouviu no vale de Megido, pontualmente em Hadade-Rimom. Se remetermos o texto ao período dos ptolomeus remontando a batalha de Palaegaza (312 a.C.) e sua consequente volta ao Egito, nesse espaço de tempo houve um grande ataque às fortificações de Jerusalém, um alto recolhimento de despojos, bem como a captura e condução de prisioneiros de guerra para o Egito. Nesse período a cidade de Megido já havia sido destruída pelos assírios, porém o ideário que remonta as mais importantes batalhas de toda essa região bem como a coligação de diversas tribos e mortes de importantes reis do reino do Sul já fazia com que a cidade fosse ligada à ideologia do reino do Sul como sinônimo de contextos relacionados a guerras e batalhas. Ao apontar para Megido, esquece-se de sua destruição, sobressaindo as memórias dos anos em que essa localidade representava uma colina estratégica nas batalhas desse povo. Porém tem-se em mente um período ainda posterior, condizente com os anos de transição entre século I - II a.C., respectivamente coincidindo com o período dos Macabeus. Sabe-se que há reações religiosas à destruição da sociedade judaica, principalmente pelos grupos de dominação ditos “pagãos”, chamando a atenção para o potencial de preservação da identidade do povo por meio da religião, mobilizado sumamente pela dominação imposta e que se articulou com os grandes levantes dos macabeus e ocasionaram ações revolucionarias e sociais de menor porte.
O apocalipse foi escrito pelo fim do reino de Domiciano, em 96 a.C. Traz-nos à memória o objetivo de toda essa história da salvação que é o objeto do Antigo Testamento e do Novo Testamento, também é atual nesse sentido que proclama o alcance cósmico da obra redentora e do reino de Cristo e a esperança de uma nova criação. O texto tradicionalmente é apontado como de autoria joanina, sendo ambientado na região da Ásia Menor, possivelmente tratasse de um cristão de origem judaica. No texto do apocalipse o termo blasfêmia ou blasfemar – Ap 16:16 reflete esse apontamento - é característico, unicamente, daquele que se opõem a Deus. Mitologicamente trata-se de “o poder contrário a Deus”, um domínio global, por assim dizer, que usurpou a legítima dominação de Deus. “Esse poder antagônico a Deus manifesta-se, sobretudo no Cesar romano e na sua adoração divina” Assim, a batalha dos últimos tempos deverá ser realizada em Armagedon, ou seja, Monte de Megido.
A Bíblia não se presta à descrição de eventos. Ela, como produção textual se ocupa do ensino, seu propósito é pedagógico e esta finalidade estende-se às narrativas bíblicas do passado.
 “A memória coletiva representa o conjunto coletivo de memória partilhada pelos indivíduos e, além disso, ela consiste de memória passada a gerações subseqüentes. Memória é o que uma cultura coletivamente carrega de seu passado, enquanto história envolve uma avaliação crítica do passado. Assim sendo, é expressa por meio de imagens partilhadas que personificam uma elaborada rede de moral social, valores e ideais considerados pelos grupos sociais. As interconexões entre as imagens partilhadas, por sua vez, formam e moldam as estruturas sociais (cadres sociaux) da memória coletiva.”
A forma da escrita pode não representar uma ruptura na memória coletiva, ao contrário, remete e reaviva essa memória. A memória tem como constituinte basilar o ensino do presente mediante o passado. Observarmos como a cidade de Megido entra no imaginário do povo bíblico nos mostra como, mesmo uma cidade, traz consigo grandezas marcantes nas memórias de um povo. Nota-se a ênfase no poder social quanto à produção de textos, mas temos que observar atentamente a importância da família em moldar a memória, bem como a monarquia, e outras instituições elaboradoras de ideários, no intuito de ocultar ou imergir memórias coletivas. Megido ganha uma força na cultura popular como recinto de batalha, local de guerras, ambiente de pelejas e mortes, de grandes exércitos e de monarcas do reino do Sul principalmente – quando nos lembramos dos textos aqui abordados.
 “Se aplicarmos estes princípios à memória da maior parte dos personagens bíblicos, vemos que eles são sacramentados em histórias oficiais não simplesmente de acordo com os fatos históricos, mas de acordo com os locais onde suas reputações foram sacramentadas”
O memorial construído e exposto sobre Megido retoma o ideário das batalhas expostas em Josué, das coligações tribais caracterizadas em Juízes, das batalhas e mortes apontadas nos livros dos Reis, a construção de um Deus estatal e o ideário da retribuição exposta em Crônicas, bem como a expectativa do fim dos dias de uma sociedade novamente oprimida por governos helênicos e romanos das obras apocalípticas.
Percebemos a força do movimento social que busca a manutenção de uma identidade judaica. É no período dos Macabeus que as ruínas de Megido retornam à memória coletiva/social de um povo que vê na força da batalha uma esperança de resistência aos opressores romanos. Essa cidade, hoje em ruínas, que passo a passo é redescoberta pela pesquisa arqueológica, já nos textos bíblicos aponta para um povo que é uma grandeza difusa, mas que em Megido encontra as reconstruções das batalhas e disputas que ilustram pessoas sedentas pela liberdade. Por vezes tal liberdade encontra-se refém das lutas, guerras, sangue e suor de uma grandeza social que se constrói sob um olhar para as fortificações de Megido. Com suas origens fundantes mantidas, com sua identidade sócio-religiosa, que conhecerá a liberdade em um futuro próximo, ergue-se o povo do Crescente Fértil.
Eis aí o convite aos latino-americanos, revisitar suas histórias fundantes, ter à memória a identidade de nossos antepassados pré-coloniais, e ter na religião um instrumento de identidade, luta e esperança para que venham os dias de liberdade.

Thiago Barbosa