A arte de pensar livremente

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Aqui somos pretensiosos escribas. Nesses pergaminhos virtuais jazem o sangue, o suor e as lágrimas dos que se propõem a pensar com autonomia. (TeHILAT HAKeMAH YIRe'aT YHWH) prov 9,10a

terça-feira, 14 de junho de 2011

A Reforma na Europa – Os legados da Reforma (economia, educação e ciência)

A Reforma na Europa – Os legados da Reforma (economia, educação e ciência)

Um dos legados das Reformas abordados por Carter Lindberg em seu As Reformas na Europa, foi sobre a economia, educação e ciência. É praticamente impossível de desatrelarmos tais perspectivas do livro de Max Weber, A ÉTICA PROTESTANTE E O ESPÍRITO CAPITALISTA, que estabelece um forte vínculo entre o sistema econômico capitalista e a filosofia e teologia protestante da Reforma, sobretudo quanto à perspectiva calvinista da predestinação, onde, a predestinação seria percebida por crentes ansiosos no sucesso mundano. Tal sucesso mundano é o sinal da eleição divina, dever-se-ia observar que a economia baseada no lucro ou as formas primitivas do capitalismo foram claramente anteriores à Reforma e que Calvino não associou o sucesso material com a posição do indivíduo diante de Deus. Certamente há de se notar que o espírito individualista e a tentativa de diminuir o poderio hegemônico de Roma foram fatores fortemente presentes nos anos anteriores a Lutero e Calvino, bem como de vários outros reformadores que participaram imediatamente antes e depois dos primeiros anos do século XVI.

Podemos perceber que tais ideais, acima expostos, ganham força em um discurso pré-reformado que denuncia a igreja. A igreja verdadeira não é a instituição hierárquica da salvação. Essa igreja verdadeira opõe-se à igreja impura, que é a igreja hierárquica, deformada. A lei da igreja é a Bíblia, de Deus e de Cristo. Tais pensamentos são usados como pedras no telhado de vidro da igreja romana, certamente foram utilizadas também nos processos reformados posteriores, e é uma constante nas igrejas protestantes modernas. Questionar a hierarquia institucional das igrejas ainda é um imperativo, não pela crítica desvairada e descabida, mas quando percebemos o uso de tal autoridade – que vilipendia o sacerdócio universal dos crentes – a crítica à autoridade dos líderes é uma chamada a reviver os ideais da reforma. Se há os predestinados era permitido pensar que também há os que não o são, deste modo o uso da hierarquia foi usado como sinais comprovadores dessa não predestinação. Os sintomas eram descobertos mediante a aplicação da lei de Cristo ou o envio de discípulos.

Nesta perspectiva de questionamento da autoridade temos John Wycliff que prevê que a dominação evangélica deve ser direcionada pela lei do amor. Entretanto a dominação do governo estatal se dá pela hierarquia, a autoridade, este ideal era fortemente usado nos novos Estados, criados a partir da crítica à igreja romana, e embasou grandes casos de dominação do Estado contra o povo. Desse modo há a estruturação dos aglomerados que, não tendo a obrigatoriedade de repassar parte dos lucros para Roma (embora ainda mantivessem o repasse aos príncipes locais) houve o acumulo de capital e tais aglomerados desenvolveram-se, formando o que atualmente conhecemos como cidade. Estes burgos – cidades em desenvolvimento - são o nascedouro dos burgueses, nome que caracteriza os homens que negociavam suas sobras de produção e acumularam um pequeno capital. Esse é o espírito da época, que permite quando mesclados, a formação do ideário capitalista – mesmo que embrionário – como o reconhecemos; uma descoberta do senhorio da consciência individual, o questionamento das autoridades hierárquicas não apenas da fé como também do Estado, a queda da hegemonia do poderio romano e o acúmulo de capital e uso deste capital como símbolo de confirmação da predestinação por Deus. Certamente o capitalismo foi um ponto fortemente atacado por Lutero e Calvino, por ser cobiça irrestrita, e exigiram um controle governamental dele. O Estado seria o responsável por políticas que tivessem em sua pauta o desenvolvimento da assistência social, a política previdenciária, ações estruturais para controle do desemprego, subemprego, formação profissional e de profundo controle da pobreza. Cinco séculos após a data base da Reforma percebe-se que esses são assuntos não resolvidos, seja no “Velho” ou no “Novo” Mundo.

Propor uma análise segmentada entre educação e ciência, sob o legado dos reformadores, é uma proposta que não deve ser levada à diante. Ambas, educação e ciência apresentam perspectivas idênticas e covalentes e é assim que as disporemos.

É certo que educação e ciência, como os percebemos no século XXI, são profundamente influenciadas pelos legados reformados. A justificação – a Graça de Deus mediante a fé – e a vocação – sacerdócio universal de todos os crentes – são doutrinas que modificaram os paradigmas medievais e permitiram a construção das propostas modernas e contemporâneas. A renascença e o humanismo são propostas que centralizam a percepção da realidade no homem e não mais no Sagrado, ou melhor, nas propostas do que é o sagrado da igreja. O mundo, antes teocêntrico, se vê agora antropocêntrico, suas propostas, lenta, mas perceptivelmente, renegam o sagrado à metafisica e propõe que a natureza seja descoberta pelas pesquisas humanas.

Na Reforma, a proposta é que o texto bíblico seja centralizado como tábula rasa, justa medida que orienta e legisla a vida dos fiéis, neste momento quase que a unanimidade dos homens europeus, mas, para isso há de se possibilitar o acesso a esse texto. Sendo assim, além da tradução para a língua vernácula havia de se pensar a preparação dos “crentes” que deveriam ser alfabetizados para que esse acesso fosse permitido. Todos deveriam ter acesso ao texto sagrado, inclusive as mulheres, tal fato incrementaria a autoestima das pessoas – sobretudo das mulheres – que foi interpretada como perigosa ao status quo masculino. Nem todos os reinos reformados permitiram a alfabetização de forma ampla, mas isso foi percebido na Escócia e nos redutos protestantes da Alemanha. Esse fervedouro educacional aponta também para uma mudança de paradigma na ciência, sobretudo nas pesquisas sobre a origem da vida temos Francesco Redi (1626-1691), naturalista italiano que aponta que os organismos vivos não se surgem por geração espontânea, como era o pensamento vigente desde sempre, mas os organismos surgem de outros organismos vivos que os antecedem e geram. O próprio protótipo do que conhecemos como microscópio óptico tem sua proposta primordial na Holanda, país amplamente tido como reformado, sob Anton Van Leeuwenhoek (1632-1723) e o inglês Robert Hooke (1635-1703). A busca por respostas (ciência) germinava sob a educação, que são difundidas como vertente de acesso aos textos sagrados; todos os grandes educadores e pesquisadores, até os grandes céticos do século XIX, são pertencentes a linhagens de sacerdotes religiosos de segmento reformado.

Em Lutero e a perspectiva da práxis educadora temos o direcionamento para que o estado fomente e a educação sob a tutela de escolas públicas, bem como de bibliotecas que seriam acessadas pelo povo. Lutero transita para uma epistemologia de indução e experiência, a ciência vê-se então liberta da metafisica, e, sua chamada à prática aponta os caminhos que serão percorridos pelos empiristas, os experimentadores do futuro. Arvora-se então a suspeita, guiada pela consciência individual e pela busca da razão, tal qual em Descartes e tantos outros.

A centralização do pensamento racional e da consciência do indivíduo são frutos inegáveis da Reforma, e, desse modo, tornaram-se a matriz teórica para o movimento humanista, liberalista e romântico. A mais vorazes críticas ao modelo religioso e as grandes descobertas da ciência só são possíveis graças a esse estupendo aparato teórico germinado na Reforma. O próprio fato de boa parte dos reformadores, exemplificamos com Lutero, foram acadêmicos, de modo que pode-se aferir que a Reforma, antes de um manifesto do Homo religiousus é uma manifestação do Homo acadaemicus. Sua estrutura básica é pensada com o viés educacional, e obviamente de questionamento, que moldam as pesquisas dos pensadores. A preocupação de Calvino em instituir sua principal obra sob um modelo apto para a consulta de cristãos denota tal preocupação. As Institutas de Calvino são resumos de compêndios teológicos e, ainda hoje, apresenta de modo resumido e profícuo, boa parte da estruturação sistemática cristã. Os sermões de Lutero, não poucas vezes, puseram-se a ensinar, e interagir – não apenas religiosamente, mas política e socialmente – com seus fiéis e líderes dos principados alemães. A própria gênese da denominação batista, com John Wesley, ressalta em seus encontros um culto deveras alongado, mas mormente embasado em prédicas dialogais, onde o conhecimento a respeito das doutrinas e do texto bíblico é compartilhado de modo dialogal.

Certo é que a Reforma torna-se um divisor de águas epistemológico, de proporções infinitamente maiores do que as pensadas por Lutero, para o mundo ocidental. O Ocidente medieval, refém das propostas romanas de manutenção da autoridade hierárquica, é vencida pelas propostas reformadas e, então, o mundo se dispõe a conhecer o nascedouro da modernidade, que, em suma, é a analise e a crítica às estruturas vigentes – economia, política, religião, sociedade, educação e ciência - sob a égide da razão, modo de entender a fé de forma inteligente, e onde o principal sacerdote de “religação” ao sagrado seja a consciência de cada indivíduo.


Thiago Barbosa

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