A arte de pensar livremente

A arte de pensar livremente
Aqui somos pretensiosos escribas. Nesses pergaminhos virtuais jazem o sangue, o suor e as lágrimas dos que se propõem a pensar com autonomia. (TeHILAT HAKeMAH YIRe'aT YHWH) prov 9,10a

terça-feira, 14 de junho de 2011

Para além de uma religião burguesa - Johan Baptist Metz (Por Thiago Barbosa



METZ, Johann Baptist – Para além de uma religião burguesa: sobre o futuro do cristianismo – Johann Baptist Metz; trad. Mateus R. Rocha – São Paulo: Ed. Paulinas, 1984.

O texto é inicialmente uma compilação de várias conferências proferidas pelo supracitado autor em diversas conferências na Alemanha. Há de se ter sempre em mente que Johann Baptist Metz é um teólogo católico, sacerdote desta igreja, e escreve em épocas distintas (cap.1 1978; cap. 2 1978; cap.3 1979; cap.4 1979; cap.5 1980; cap.6 1980; e, cap.7 1968) sempre tendo em vista a perspectiva européia e alemã, bem como da igreja à qual está ligado. Há de se notar o comprometimento do teólogo com a teologia Latino-Americana, sobretudo com os movimentos eclesiais de base e a alimentação da libertação que se arvora no Novo Continente desde os anos de 1950/60. Seu texto é, sobretudo, moderno e contundente ainda nos dias de hoje, mesmo após três décadas desde sua veiculação original, devido à religião burguesa que agora, infelizmente, mostra força descomunal também no continente Latino-Americano, sobretudo quanto à perspectiva da Teologia da Prosperidade que oprime e usurpa o homem e a mulher pobre deste continente. Reviver a chamada à revolução em Johan Baptist Metz é perceber que ainda há um longo caminho até que o cristianismo seja “Para Além de uma Religião Burguesa”.
Inicia-se a presente obra com a apresentação fundamental de que a religião messiânica da Bíblia tornou-se, no cristianismo de nossos dias, amplamente uma religião burguesa. Esta constatação não pretende ser uma denúncia do burguês cuja problemática social em si não é discutida, ante é a expressão de uma preocupação com o cristianismo que se coloca a si mesmo em questão quando não percebe nem afirma a sua diferença em relação à religião burguesa.  À sombra das prioridades evangélicas, praticam-se as prioridades burguesas.
O segundo capítulo, Cristãos e Judeus depois de Auschwitz, anuncia o diálogo judaico-cristão como significado para os cristãos essencialmente que, a primeira palavra não cabe a nós; que não somos nós quem abriu este diálogo. Não se propõe diálogo às vítimas. Só é possível chegar a este diálogo se as próprias vítimas são as primeiras a falar. Uma perspectiva apofática e que remonta ao ecumenismo. A interlocução para tal diálogo não passa mais pelo sujeito religioso, mas essencialmente pelo indivíduo ameaçado por Auschwitz, o sofredor. A posição triunfalista da mensagem histórico-salvífica de Cristo é um desserviço do cristão. Todas as vezes que o cristianismo dissimula triunfalissimamente a si mesmo suas próprias fraquezas, sua capacidade sensória relativa aos perigos e às catástrofes atrofia-se progressivamente. É a interpretação apolítica do cristianismo, bem como a interiorização e individualização adialéticas de seus conteúdos, que conduziram sempre a uma politização acrítica, de certo modo posterior do cristianismo. A busca pelo ecumenismo judeu-cristão é passo que há de ser dado pelo plano eclesial e social. Esse sentimento de busca e aproximação não deve impor-se apenas aos meios teológicos profissionais e da igreja, deve, antes, reconhecer o esquecido e reprimido desde os seus inícios, o povo judaico e sua religião messiânica, estendendo este pensamento a outros igualmente esquecidos e oprimidos, tornando o cristianismo, finalmente, messiânico.
Segue em, O pão da sobrevivência, com uma proposta antropológica revolucionária à luz do sacramento eucarístico. Isto é notável já na própria história do homem com a natureza, esta história é uma história de dominação ou de sujeição. O homem mostra-se sujeito de dominação e de submissão em confronto com a natureza; seu saber torna-se, sobretudo, um saber de dominação, seu modo de agir, um modo de agir dominador em relação a natureza. O homem é, enquanto submete. Essa é a sua identidade, formada na base do princípio de dominação ou subjugação, torna o homem um ser propriamente sem relação, um ser egoísta no verdadeiro sentido da palavra.  A eucaristia do pão da vida torna-nos sensíveis à morte. Ele traz a morte como que de volta para dentro da vida; permite-a, de novo, em nossa vida, para que esta vida não se transforme em mera sobrevivência. É esse pão que fortalece o nosso ser sensível para com o sofrimento e para com os sofredores. É o pão da vida eucarístico que alimenta-nos para a caridade. É a ceia que se apresenta como alimento de luto e do temor, a vida para a qual este pão nos alimenta não pretende tornar-nos invulneráveis e inatingíveis, mas imersos nas causas existenciais das pessoas. A revolução antropológica por meio da eucaristia é a libertação da prática onde buscamos realizar nossos desejos pessoais, de nossa prepotência, de nossa atitude de dominadores, de nossa insensibilidade para o sofrimento alheio. É uma chamada às virtudes de não-dominação, libertando a sociedade das formas de opressão e subjugação para com as outras pessoas.  Rever  a política e a moral seria o ponto de partida para tal revolução antropológica. Há de se notar o inicio de tal revolução nas comunidades de base da América-Latina, unindo oração e luta política, Eucaristia e atividade libertadora.
O quarto capítulo propõe O Caminho Da Segunda Reforma, uma perspectiva para se desvencilhar da burguesia arraigada no cristianismo e iniciar uma caminhada pós-burguesa. Não é o fato de o cristianismo colocar questões acerca da graça e tratar de graça, que o torna estranho aos homens, que o faz distanciado e alheio ao nosso tempo, mas o mundo como ele procura graça e como discorre sobre ela. A Segunda Reforma concerne a todos os cristãos, é o amor ao evangelho e ao mundo, não nos poderemos dar mais ao luxo de cultivar nossos cristianismos hemiplégicos, alienados. O sofrimento social é produto da subtração da graça que seja sentida pelos homens, o medo do contato como o terreno, com os sentidos, com a vida física e social na qual a graça de Deus que se encarnou e que ressuscita os mortos quer ser para nós o Deus de misericórdia e de bondade. A graça se manifesta na nova Reforma na alegria festiva dos homens, não na alegria tensa e simulada do espírito. A teologia expressou e expressa esse medo, verdadeiramente de natureza constitucional, em relação a qualquer contato com o terreno, o material. Relegaram o cristão a um mundo alienígena. Nessa religião burguesa, todas as passagens centrais do Novo Testamento, sobretudo as do Sermão da Montanha e aquelas referentes à conversão, podem ser tomadas em sentido puramente espiritual, como meras expressões do estado de espírito, mas a nova Reforma há de mudar tal perspectiva. O cristianismo como religião burguesa não nos traz consolações, antes, a nova Reforma traz a graça que não pode ser separada do acontecimento social e político. Isso significa o abandono do cristianismo burguês alienado e, a invocação da graça nos sentidos e na práxis sensível. Para tal é preciso indivíduos libertos, que conheceram a liberdade cristã como libertação. É essa revolução antropológica que se propor a resolver questões sociais, econômicas e ecológicas. O cristão que percebe a graça se compromete na luta histórica que de há muito em sendo travada em favor de um mundo ameaçado por conflitos sociais de proporções mundiais e por catástrofes ecológicas; na luta por um mundo pós-burguês e pós-capitalista e por uma humanidade de certo modo pós-burguesa. Sendo assim, é imperioso que a segunda reforma ocorra de baixo para cima, dos movimentos de base, sendo verdadeiramente uma reforma estrutural de base. As igrejas de Terceiro Mundo são protagonistas desta reforma, unem a mística e a política, a práxis religiosa e a práxis social; os cristãos de tais comunidade se transformam em agentes de sua própria história religiosa e política. Tais agentes deveriam então emergir das próprias comunidades, e cuidarem para não serem cooptados pelo sistema religioso burguês.
Cristianismo e Política: para além de uma religião burguesa, apresenta que  o carrossel da política se movimentaria para a esquerda, se ela se guiasse pela melodia do evangelho, ou, melhor ainda, do Sermão da Montanha. A religião apresenta-se imprescindível para uma salvação pós-burguesa e pós-individualista do sujeito. Há uma estranheza inegável no plano político e moral das igrejas que se enveredam por tal caminho. A teologia atual, ao moralizar as contradições sociais, apresenta uma teologia que considera a situação social como natural e consequentemente imutável. Aqui se vê que uma inspiração socialista, neste sentido, da consciência política não é mais simplesmente estranha nem mais considerada simplesmente como anticristã dentro de nossa igreja. Tal hipótese de que uma política de inspiração socialista só é possível e só pode ser justificável pela via democrática, soba a forma de um socialismo democrático que não renegue as conquistas da história burguesa de liberdades, mas a assuma na dialética histórica e, justamente deste modo, salve a herança burguesa que não pode ser abandonada. Uma política que inclui uma reconhecida divisão de poderes, o direito à oposição, a liberdade de pensamento e de expressão, e a soberania popular.
O sexto capítulo, Quando os Dirigidos se Modificam, inicia dizendo que importa que os fiéis se modifiquem, e não se comportem como meros dirigidos, pois é dessa forma que surgem as bases da igreja. Não é a religião que reivindica o burguês, mas é o burguês que reivindica a religião, desse modo ele adequa a religião às suas vontades, acomoda-a em suas plausibilidades. O burguês aqui exposto não permite que a religião tenha acesso á sua pessoa, ele se serve da religião quando precisa dela. O ecumenismo só progredirá quando ambas as igrejas abandonarem decididamente o provincialismo de um cristianismo burguês e corresponderem às exigências da igreja e do cristianismo universais. Hans Küng aponta que não há o menor perigo de uma revolução violenta a partir de baixo, mas também não há a possibilidade de uma revolução suave vinda de cima. Há então as igrejas de massas – impregnada de elementos apologéticos e de assistência para o povo, a massa; as igrejas dos burgueses – germes de uma teologia-liberal burguesa; e igreja de base – a igreja do povo, apoiada numa união constitucional entre crítica construtiva à igreja e crítica construtiva à sociedade. Certamente a religião burguesa não impõe exigência, mas também não consola. Não há, ou é praticamente impossível, obter-se material para a mística na igreja burguesa, bem como para a adoração, resistência e ainda para conversão. Nossas igrejas poderiam realizar um trabalho pioneiro, em favor das mudanças sociais que ainda não podem assumir uma dimensão política. Seríamos sujeitos solidários, vinculados à redenção, à libertação, a experiência da graça, da liberdade, da mística e da política, eis o futuro da igreja de perspectiva pós-burguesa.
O texto continua nos instigando A Fé Dos Reformadores, pois, antes de havermos começado a verdadeira reforma, não devemos pensar em contrarreforma, nem falar, por toda a parte de caos e de inquietação. É só com esta liberdade que Deus pode reinar. Se não, queremos entender o discurso relativo ao seu poder e à sua dominação como mera ideologia e dominação religiosa. A igreja não podem mais voltar à sua antiga ordem e tranquilidade. Ela deve aprender a conviver com a rebeldia e as objeções de uma liberdade crítica, e incorpora-la ao seu ritmo vital. A confusão reinante entre os fiéis, e tantas vezes evocada, não provém de uma teologia crítica, mas antes, e precisamente, do fato de que as igrejas expõem friamente seus fiéis a uma mudança, sem lhes ter aberto a mente para uma compreensão crítica em relação à reformabilidade da própria igreja. Uma das causas da crise dentro da igreja não é o excesso de crítica, mas uma catastrófica ausência do exercício de liberdade fundamental e crítica no interior da igreja. Quem considera o desenvolvimento desta consciência crítica já como um sintoma de apostasia, deve perguntar-se a si mesmo se o que ele pretende é realmente a igreja de Cristo ou, antes, um sectarismo religioso sem humor e sem consciência crítica; se não está confundindo verdadeira piedade eclesial com uma espécie de voluntarismo cego. Duvida-se demais da fé dos reformadores, denuncia-se demais a revolta da liberdade crítica dentro da igreja como sendo a apoteose da incredulidade. Por isso os próprios reformadores devem ter a coragem de devolver a acusação de pouca fé, de fé pusilânime ou fingida, e contestar a boa-vontade e a boa consciência daqueles que se julgam ser mais igreja só pelo simples fato de não mudarem nada. A reforma deve atingir a todos, caso contrário não surtirá efeito.
O livro finaliza com Paradigma Para Uma Cultura Política Da Paz – fazendo uma alusão à luta da Nicarágua pela liberdade - o amor a Deus pode exigir do cristão que assume sua própria impotência que sofra as injustiças que lhe são feitas, ele é responsável, não só por aquilo que ele faz ou deixa de fazer, mas também por aquilo que ele deixa que aconteça aos outros. Obviamente tal processo modificador do paradigma eclesiástico é capaz de cometer faltas, e isso não é um sinal de impotência ou de opressão, mas uma primaz exigência que se põe à liberdade humana. Há de se ter coragem para resistir contra tudo o que na vitória ameaça trair e enfraquecer os ideais desta revolução.
Thiago Barbosa

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