A arte de pensar livremente

A arte de pensar livremente
Aqui somos pretensiosos escribas. Nesses pergaminhos virtuais jazem o sangue, o suor e as lágrimas dos que se propõem a pensar com autonomia. (TeHILAT HAKeMAH YIRe'aT YHWH) prov 9,10a

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Resenha - Transforma meu pranto em Dança


NOUWEN, Henri, J.M. – Transforma meu pranto em dança: cinco passos para sobreviver à dor e redescobrir a felicidade – Henri Nouwen; [compilado e editado por Timothy Jones; trad. Beatriz Gotardelo Fraga Moreira]. – Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2007.
Henri Nouwen foi escritor, teólogo, de perspectiva católica romana, esteve sempre associado à reflexão teológica do cuidado. Principalmente nos últimos anos de vida esteve cuidando de uma comunidade voltada para o amparo a pessoas com deficiências físicas e/ou mentais. Faleceu no ano de 1996, vítima de um ataque cardíaco. O presente texto apresenta-se como um pensamento a respeito do entendimento da dor e do sofrimento, bem como esses sentimentos são enfrentamentos que apenas frases eloquentes não são capazes de apaziguar. Para que o pranto passe à dança há de se notar a presença de Deus na vida.
O autor aborda a temática da morte e do sofrimento, não apenas descrevendo, mas antes preocupado com o cuidado do humano e manifestação de Deus nesses eventos de dor. Em um mundo repleto de desventuras, perceber Deus é um trabalho de percepção das nuances mínimas, é buscar uma resposta para um pranto que vem da violência, do descaso com o ser humano, da sobrevida dos oprimidos e dos que são mantidos em condições de miséria. É, assim, não desperdiçar as adversidades, mas antes, notar Deus em meio ao caos. Para quem conhece a dor e o sofrimento, em alguma de suas dimensões, sabe como palavras “politicamente corretas” pouco mitigam o sofrimento. E quem já não teve a sua dor?
Com o fardo da morte que se apresenta ao amigo Jonas, Henri Nouwen inicia a introdução de transforma meu pranto em dança. As palavras certas causariam pouco efeito, talvez nenhum, frente à morte de um filho tão esperado. Para a morte de um filho, para a morte em si, não há consolação, há a emanação da dor. Palavras, frases, gestos esperados, nada pode suplantar a dor, aqui mostrada como dado existencial, presente e característico em todo homem ou mulher. Para que se transcenda do pranto à dança, o autor propõe cinco passos, cinco capítulos que refletem sobre a dor e como mitiga-la, ou melhor, aproveitá-la.
A dor é inevitável em algum momento da vida, em sua comunidade de Daybreak – com seus deficientes físicos e mentais - também. Interessante é que as pessoas ali não se desdobravam sobre a dor em si, mas antes perguntavam em como transcende-la, “elas indagavam-se sobre como transformar o sofrimento numa oportunidade, em vez de vive-lo como uma demorada interrupção na vida delas” (p.20). Há de se ver a esperança, uma que não se estremeça pela enfermidade, ou ainda que não desvaneça com os sonhos desfeitos ou confianças traídas. Enfrentar as perdas é confrontar o pensamento de que o mundo deve suprir nossas necessidades. Deve-se ter na dor, a esperança da vitória que denotará esforço. Assim depositaremos nossos pesados fardos em mãos maiores, mais capacitadas, as mãos de Deus.   “O segredo para entender o sofrimento é deixar de nos rebelar contra os inconvenientes e as dores da vida” (p.26). Deixa-se o lamento, que nos remete à pequenez humana, mas não se deixa o sofrimento, pois é nele que Jesus guia-nos para além de nós mesmos, para encontrarmos a graça de Deus. Encontramos a gratidão, mesmo diante a dor, encaramos a jornada da vida com Deus moldando nosso coração. Tornando-nos agradecidos, aprendemos a celebrar, mesmo através de lembranças difíceis e atormentadoras, submetemo-nos ao cuidado de Deus, que como a pode de uma árvore, tolhe alguns galhos, despe-nos de várias folhas, preparando-nos para uma colheita plena.
O segundo capítulo, Agarrar e Soltar inicia apresentando a imagem de um grupo de trapezistas, que para ter a plenitude do espetáculo e voarem suavemente devem antes soltar-se no vazio, e confiante, agarrarem as mãos de seus parceiros. “Viver com essa disposição para soltar é um dos maiores desafios que enfrentamos” (p.35). Ao nos agarrarmos à vida, tendo-a como propriedade – posse ou objeto que deve ser segurado – não nos dispomos ao voo, somos limitados. Esse é um caminho que nos leva a uma exacerbada individualidade e senso de auto-realização. Diante de uma grande dor ou desgosto notamos a finitude do nosso controle sobre a vida. Encarar a morte é perceber a finitude da vida de modo inquestionável, assim, de frente com tamanha dor, nota-se que a posse da vida é uma quimera, que nos transforma, limita, em um auto-engrandecimento. Notadamente, haveremos de soltar coisas que são tidas como importantes, mas mediante a vida, mostram-se abandonáveis. Mas no intento de termos posse itens supérfluo caímos em tentação. “A tentação é reagirmos com lamúrias constantes aos nossos planos e programas frustrados. O pesar transforma-se num constante amargor” (p.39). Como os discípulos de Jesus, que abandonaram suas fontes de segurança econômica e suas famílias para seguir Jesus, nós devemos também nos lançar aos cuidados do Pai. Para tal expectativa devemos vencer o medo de nos lançar ao cuidado de Deus, ao fixarmos os olhos em Deus abriremos mão dos temores que nos cercam, seremos livres para enxergar o sofrimento das gentes, livres para responder com compaixão, paz, e serenidade, responderemos com nossa própria pessoa. Certamente a oração ganha essa conotação de método libertador e de confiança. “Quando oramos, estamos admitindo que não sabemos o que Deus vai fazer, mas, ao mesmo tempo, lembrando que nunca o descobriremos se não nos expusermos a riscos” (p.44-45). Oração é o método para se abrir as mãos e soltar-se no ar. Mediante a oração damos o salto, mesmo sem o pleno entendimento, mas Deus pode usar outros caminhos que não os nossos velhos caminhos. No sofrimento vemos a incompreensibilidade de Deus, seus caminhos são mais altos que os caminhos humanos. A Deus devemos nos entregar, sem receios, para voar levemente e encontrar pouso seguro. Abandonando nossos velhos entendimentos sobre tudo e todos, nossas expectativas são depositadas Nele.
Em Do Fatalismo para a Esperança, mostra ao leitor o fascínio sedutor das fatalidades. Ao mesmo tempo em que se ameniza a percepção do fatal, maquia-se dando-se lhe um aspecto pueril. Entregar-se ao fatalismo é uma opiosa saída do ser humano. “o fatalismo pode manter-nos dependentes de rotinas, de ações que poderíamos ter mudado com urgências se tivessem sido examinadas” (p.56). Mas, como em vários momentos, temos a fé e o fatalismo muito próximos, devemos lembrar que “Confiar em Deus permite-nos viver em expectativa ativa, e não em cinismo” (p.57). A esperança que emana da fé amadurece e se purifica através das dificuldades. Assim, a esperança vem daquele que é mais forte que as intempéries fatais da vida, ou mesmo que a própria vida e os sofrimentos. Confiar é, em fé, levarmos a esperança à presença graciosa de Deus. Mais do que o fatalismo é o anseio humano por Deus. Essa esperança guia-nos pelos momentos tranquilos e agradáveis, como pelos desapontamentos e tormentas da vida. No desenvolvimento da paciência na espera pela ação divina, temos o paradoxo da expectativa que denota que “aqueles que creem no amanhã viverão melhor hoje, aqueles que esperam que a alegria surge da tristeza podem descobrir o começo de uma nova vida diante da velha” (p.67). Viver a crença da esperança é dizer não a toda forma de fatalismo.
Da manipulação ao Amor aponta para a dimensão humana da compaixão. “Viver com compaixão significa entrar nos momentos sombrios do outros” (p.69). É, sobretudo, se abrir para a dor do outro, pôr-se no lugar do outro. É a disposição para a compaixão que nos impede de, percebendo as gentes – homens ou mulheres – envoltas na dor e no sofrimento, dar-lhes uma resposta rápida, vazia, sem perceber a dimensão real do cuidado para com eles. Não nos demoramos, quando confrontados com o mal, em buscar formas que renovem a alegria ou o ânimo, agindo dessa forma nos afastamos do epicentro da dor, refugiamo-nos em um relacionamento superficial, que só poderá aprofundar-se na compreensão do sentimento alheio. Buscamos o conforto, não das gentes, mas o nosso próprio. Encastelados nos sentimentos frívolos positivos, não mergulhamos na profundidade do sofrimento alheio, nos indispondo assim a relações realmente profundas e complexas com o ser humano. Novamente a fé cristã aponta para a oração como uma das metódicas possibilidades para mover-se em relação à outra pessoa. Buscamos sempre nos justificar, instituindo um trágico círculo; “quanto mais tentamos nos justificar, mais esbarramos com nossa inabilidade para fazê-lo” (p.75). A justificação que é incredulidade, força humana impondo-se à força divina, é ativismo que provém da incredulidade que insiste em que Deus não pode operar ou agir. “Mas deveríamos saber que o que fazemos para ajudar, servir e ministrar não tem o poder de criar nada sem Deus, mas é a nossa resposta ao que Deus está criando” (p.75). Assim a compaixão não é apenas uma demonstração do “se importar” humanos, antes é uma atribuição divina, de Deus. Nós não competimos com Deus para a demonstração da compaixão, mas só a demonstramos por que refletimos a compaixão que Deus teve por nós antes. Quando entendermos isso, os frutos de nossos ministérios não serão mais nossos, mas, antes, serão de Deus, pois efetivamente vieram Dele e por meio Dele, são frutos antes de sua misericórdia por nós, que pela graça somos impelidos a mostrar aos nossos irmãos e irmãs. Na saga pela compaixão, mediante a graça, dados irrevogáveis de Deus, podemos nos dispor a, em alguns momentos estarmos a sós, não em solidão, mas em solitude. Solitude com Deus, um momento onde Deus fale com extrema liberdade, sem os entraves da vida moderna, dos movimentos exagerados da vida moderna, encontramos na solitude com Deus a contemplação da graça e da compaixão no outro. “Viver, servir e adorar com outros nos leva, desse modo, a um lugar onde chegamos todos juntos e lembramos que  somos interdependentes, que não somos Deus, que não podemos satisfazer as nossas próprias necessidades e nem podemos suprir completamente as necessidades uns dos outros” (p.84). Em meio à comunidade notamos Deus no outro, homens e mulheres, crianças e anciãos. Somos enfim transparentes uns para com os outros, “e a luz pode brilhar através de nós, e Deus pode falar através de nós” (p.86). É, então, dispor-nos a amar o inimigo, é o fim do inimigo. Pelo amor transcendemos a atração pessoal, a compatibilidade mútua, os desejos meramente sexuais, a compreensão cultural, a proximidade é com o absoluto do ser humano, não com o relativismo dos grupos sectários da espécie humana. Se os inimigos o são apenas por nossa insistência em excluí-los, com o fim da temerária exclusão, não há inimigos, mas irmãos e irmãs. “Deus torna-se parte de nosso pranto e convida-nos a aprender a dançar, não sós, mas com outros, compartilhando da própria compaixão de Deus, tanto dando como recebendo” (p.91).
Mas a morte é implacável e certa, mesmo com essas constatações a humanidade teima em amenizar, mascarar a morte. Iludimos falseando a certeza da morte. Esse rompimento drástico com o tangível, o perceptível, talvez seja a razão pela qual nunca estamos preparados para essa trágica cisão. Mediante essas convicções, da certeza inevitável da morte e da incerteza do que está para além da vida, é que podemos enfrentar “a morte sem pavor ou rejeição” (p.100). A morte parece ser o antagonismo de Deus, mas curiosamente, frente à morte de Cruz, Jesus contempla o Deus que está ausente. Esta teologia negativa, da ausência, ainda sim nos remete à dimensão do cuidado e da esperança. A jornada de Jesus teve um duro golpe na cruz, mas ainda sim trouxe esperança enquanto percorria o caminho de Emaús. A morte é o nosso êxodo, é o mar que se abre para a completude. “É uma certeza que nos leva a confiar em que a jornada da vida para a morte há de nos conduzir, finalmente, da morte para a vida” (p.103). Em da Morte temível para a Vida de Gozo, vemos a finitude humana mediante a infinitude divina, e mais, de soslaio temos a centelha divina que nos aponta o infinito. A dor da morte é irrepreensível, mas assemelham-se mais às dores de parto, pois é assim que experimentamos a vida, agora eterna. Assim o pranto se transforma em dança, enfim.

Thiago Barbosa

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