A arte de pensar livremente

A arte de pensar livremente
Aqui somos pretensiosos escribas. Nesses pergaminhos virtuais jazem o sangue, o suor e as lágrimas dos que se propõem a pensar com autonomia. (TeHILAT HAKeMAH YIRe'aT YHWH) prov 9,10a

sábado, 23 de abril de 2011

TOCANDO VIDAS, RESGATANDO ALMAS: uma perspectiva “graciosa” no cotidiano.


TOCANDO VIDAS, RESGATANDO ALMAS: uma perspectiva “graciosa” no cotidiano (Lc 8:40-41.49-56)

EXORDIO
(João Alexandre - Em nome da Justiça)
Só com muito amor a gente muda esse país
Só o amor de Deus pra nossa gente ser feliz
Nós os filhos Seus temos que unir as nossas mãos
Em nome da justiça, por obras de justiça
Quem conhece a Deus não pode ouvir e se calar
Tem que ser profeta e sua bandeira levantar
Transformar o mundo é uma questão de compromisso
É muito mais e tudo isso.

Busco nesse “poema musicado” de João Alexandre uma ilustração para a idéia que tentarei discorrer nesta noite. Evidentemente o mundo mostra-se caótico, mesmo aos olhos mais desavisados e inertes. Vimos na abertura deste congresso o testemunho do Pastor Carlinhos Félix o testemunho sobre o cuidado de Deus em livrá-lo do trágico “11 de setembro”. Infelizmente outras 2.996 pessoas não tiveram o mesmo livramento, vários destes cristãos como eu e você, mortos não pelas ações terroristas, mas sim pelo ódio oriundo do fundamentalismo religioso que aponta para a morte, antes de revelar em si a vida. Os desastres geológicos do Haiti, Chile e, recentemente, Japão mostram a fragilidade frente a uma força muito maior, as forças naturais que ocasionam fenômenos como os terremotos, maremotos, tufões e outros diversos fenômenos cataclísmicos que ocasionam a morte e a desesperança. Mais recentemente vemos a ação de uma mente inconseqüente que proporcionou as cenas de terror na escola em Realengo (RJ) deixando um rastro de medo e morte. Doze foram os mortos, incluindo o autor do ato, e uma enormidade de outras famílias traumatizadas com a gratuidade da violência dos dias atuais. (MIQUÉIAS 7:2 – Pereceu da terra o piedoso, e não há entre os homens um que seja reto; todos espreitam para derramarem sangue; cada um caça a seu irmão com rede).
É nesse contexto de profunda desesperança que nasce no Crescente Fértil a apocalíptica judaica, um estilo literário que retrata a dura vida do povo sob o julgo Greco-Romano e que, aponta em um mundo que ainda virá a sua esperança. O Messias haveria de vir, os mortos ressuscitarão e todo “choro e ranger de dentes” cessará. O texto que escolho para refletir juntamente com os irmãos é certamente fruto desse ideário. Trata da vida se sobrepondo à morte, uma perspectiva da “graça” no cotidiano das pessoas.

NARRATIO
Lc 8:40-41.49-56
O evangelho de Lucas trata-se, seguramente, de uma obra nascida da fé de uma comunidade e fundada sobre uma tradição. O autor usa como fontes de apoio o evangelho de Marcos, as testemunhas oculares e a tradição oral das pregações apostólicas. Seu autor é um intelectual metódico de linguagem relativamente pura e gentílico-cristão – e suas idéias denotam um interesse particular pelos gentios. Serviu-se do evangelho de Marcos e trata-se possivelmente de Lucas, companheiro de Paulo, contemporâneo de Mateus. Lucas olha a vida de Jesus retrospectivamente, não somente como historiador que deseja retraçar os eventos passados em sua ordem cronológica, mas como crente que sabe que a ressurreição de Cristo dá a tudo que precede o seu entendimento verdadeiro. Assim, Lucas torna-se o evangelho dos pobres e insiste sobre o universalismo do evangelho.
Aqui especificamente o autor relata a busca de Jairo, um chefe sinagogal, pelo restabelecimento de sua filha. O que basicamente sabemos deste homem deve-se ao que presumimos relacionado à sua profissão. O número de sinagogas na Palestina até o ano 70 d.E.c. deve ter sido pequeno. Mas as raízes das sinagogas não devem se encontrar, como se presume amplamente, no exílio Babilônico, mas numa instituição pós-exílica “que estava encarregada de realizar tarefas públicas, entre as quais se incluíam também funções religiosas”. As sinagogas de Israel serviam tanto à leitura em voz alta da Torá e ao ensino dos mandamentos, decerto inclusive ao ensino de crianças, como também à hospedagem de estrangeiros em cômodos especiais, presumivelmente, sobretudo de peregrinos judeus provenientes da diáspora. Dava-se ali a leitura semanal da Torá, seguida de tradução para o aramaico (Targum), ocasionalmente traduzia-se também para o grego; há a leitura dos profetas (Haftarah) e a recitação do Shemá.
Este recorte textual é, portanto pertencente ao gênero literário conhecido como apocalipticismo, sendo designado como uma corrente religiosa no judaísmo do período helenístico-romano e no protocristianismo. Vemos isso, pois é parte de um ideário que concebe a eminente presença do tempo final e o aumento do mal ou de tempos de tribulação e catástrofes cósmicas, a expectativa da ressurreição, de um juízo final sobre todas as pessoas; desenvolvem-se concepções mitológicas de uma figura de juiz celestial como a do “Filho do Homem” e, mais tarde, também de figuras messiânicas de um Salvador. No período da redação “lucana” observa-se todos esses elementos presentes e elucidados sob a pessoa de Jesus, o Messias, o Salvador.
A morte, o desespero, a catástrofe e a desilusão estavam à porta de Jairo, e ele vê em Jesus a possibilidade de solução para o Caos que se levanta em sua vida. Sua filha está à morte, o mundo não lhe apresenta soluções, ele é vazio, triste, monocromático. Jesus opta em dar-lhe ajuda; acalanto, esperança, mas a morte parece ser mais rápida e chega e no meio da multidão a notícia do falecimento de sua filha. “Não incomodes o mestre, sua filha está morta” (v. 49). O seu maior temor tomara forma, não há mais nada a ser feito, apenas “choro e ranger de dentes”. Mas mesmo frente ao Caos estabelecido, quando tudo parece determinantemente acabado e sem esperança, Jesus opta em TOCAR A VIDA da filha de Jairo. Como cristãos, temos imitado no líder e tocado a vida dos que jazeram sob este mundo?

ARGUMENTAÇÃO
1 - NÃO INCOMODE OS CRISTÃOS, O MUNDO ESTÁ MORTO.
Quantas vezes você e eu já ouvimos frases do tipo: “Esse mundo não tem mais jeito”; “esse mundo está perdido”; “nem Deus dá mais jeito nesse mundo”; ou ainda “do jeito que as coisas caminham o mundo está acabando”. Elas refletem a desolação e o Caos estabelecido no planeta, a desesperança que toma as pessoas e suga delas a força de lutar por um mundo melhor, mais humano, mais respeitoso, mais amoroso. Essas pessoas buscam refugio post-mortis, no além-vida, no transcendente. Jairo e outros que o acompanhavam tiveram essa postura, ela até certo ponto é natural, presumível, mas não acaba aí. O texto aponta que todos choravam e pranteavam a morte da filha de Jairo (v.52), aparentemente nada mais podia ser feito, cabia àquele momento a resignação e conformação com o irremediável, a morte é o irremediável, aparentemente contra ele não há solução ou disfarces, a um mundo que está morto resta o choro e o pranto; até que, aqueles que têm em si o Jesus que é Cristo, optem em tocar o mundo morto. Nós repetiremos o verso 52b: “Não choreis; ela (o mundo) não está morta, mas dorme”. Assim como essas palavras causaram espanto por sua audácia naqueles dias, hoje causará o mesmo espanto. Santo espanto esse que reflete o amor dos cristãos por um mundo morto. Se analisarmos o texto como um quiásmo (poesia judaica) veremos que este é o centro do texto, seu coração. Os versos 51 e 52 são o cerne desta redação, o principal é a notícia de que, por mais que tudo pareça “deserto e desilusão”, Jesus noticia a esperança de dias melhores. Uma nova vida se levantará onde há a total e completa ausência de vida.
2 – A “GRAÇA” NOS IMPULSIONA A REMAR CONTRA A MARÉ
“E riam-se dele, porque sabiam que ela estava morta”. Eventualmente esse será o comportamento daqueles que não percebem a ação da graça de Deus e de uma ação efetiva dos cristãos. Isso pode parecer utópico, e quando observamos as circunstâncias que permeiam o movimento evangélico moderno, realmente o é. O número de pessoas que respondem ao censo do IBGE como evangélicas cresce notavelmente, da mesma forma que o mundo se afunda no Caos social. Pensar que o cristianismo pode mudar o mundo pode, e deve, provocar risos no mundo. Afinal, qual cristianismo mudará o mundo: O Cristianismo das Cruzadas que enviava crianças na frente do pelotão de batalhas por terem um número menor de pecados, e, portanto seriam mais efetivas para matar os mouros islâmicos; ou o cristianismo protestante que fomentou a morte de mais de 100.000 anabatistas na Alemanha do século XVI; ainda, quem sabe, o cristianismo que apoiou o nazismo e a ação imperialista contra os africanos, julgando que nem judeus, nem negros, nem índios são seres humanos por completo, portanto, são indignos da “Graça” de Deus; ou mesmo o cristianismo de uma bancada evangélica que teima em envolver-se em escândalos de corrupção e ainda oram pela “santa propina” recebida. Nenhum desses cristianismos poderia mudar o mundo, apenas o cristianismo que imita Jesus pode dar uma lufada de esperança para o mundo morto, o cristianismo que entra no quarto, toma o defunto nos braços, toca-o com amor, carinho, afeto, dedicação e, aí sim diz: “Levanta-te” (v.54). Porque é esse Espírito Santo, essa força que dissipa as trevas, que elimina o mal, abomina a morte que traz vida ao mundo. É o cristianismo de um Jesus que não teme tocar o morto, se aproximar dele, que pode trazer vida, esperança, quem sabe de uma forma definitiva.

PERORATIO
A persistência de Jesus em tocar a vida da filha de Jairo surpreende a todos (v.56). É urgente que, como cristãos, aprendamos a tocar as vidas, mundo que nos cerca, a sociedade que nos envolve. Evidentemente notaremos que vários nos ridicularizarão, talvez porque seus olhos estejam fitos nos cristãos que ao invés de tocarem as vidas as afligiram, ocasionando mais morte e desilusão, mas quando entendermos que nossa motivação não é nossa instituição denominacional, nossa bandeira eclesiástica, mas a “graça” de Deus manifesta por Cristo em nós e, principalmente a todo o mundo, eles verão que a religião não é o ópio do povo, no sentido de uma droga entorpecente que ilude os fracos, mas o Cristo ressurreto é o “suspiro dos oprimidos” e que a vivência desse Cristo no Cristão é, não mais ópio ilusório, mas cafeína pura, um forte energizante que nos impulsiona a fazer deste mundo um lugar de vida, harmonia, paz e, efetiva “graça” de um Deus que se manifesta no cotidiano.  E, somente aí, poderemos começar a pensar em resgatar as almas. Mas isso é assunto para uma próxima conversa.

Nele, que nos impulsiona a viver...
Thiago Barbosa

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