COMENTÁRIO SOBRE ADOLPHE GESCHE EM: O MAL
O mínimo que se pode pensar ao acessar o texto de Adolphe Gesche é sua ambição, no mínimo homérica, ao dispor-se escrever sobre Deus e o MAL. Assunto que lenta e “homeopaticamente” é ministrado ao leitor e apresenta-se não como um manual sistemático – como é comum em inúmeros livros de teologia – mas sim como um ponto de reflexão profunda e inicial sobre o mal e seus desdobramentos na humanidade. Assim iniciamos a leitura do capitulo dois, DEUS NO ENIGMA DO MAL apresenta já no titulo a idéia de mesmo Deus, como divindade suprema, característica da religiosidade cristã, mostra inserida, por vezes mergulhada no próprio pensamento e idéias que surgem a respeito da idéia do MAL. O MAL é o temível, o impensado, intelectualmente é impensável estabelecer uma apologia do MAL. Assim, em suma, o MAL detém uma superdeterminação de seu caráter, isso não pode nos levar a cruzar os braços pedindo demissão, nem nos mergulhar em uma torrente de culpabilidade mortífera, A finalidade da reflexão de Gesche é entender bem o que é o MAL e medir bem a responsabilidade da humanidade sobre ele. É ir além de uma superdeterminação antropológica por meio de uma superdeterminação teológica, talvez não seja tão temerário abordar o MAL “Teo-logicamente”.
Usando o padrão Téo-logico e a abordagem proposta sob o texto de gênesis, é exposto o assombro, surpreso, do próprio Deus ao deparar-se com o MAL. Na narrativa de cosmogonia e antropogonia, o MAL é aquilo que não foi previsto, não foi criado, não é abordado ou descrito, apenas emerge, como se imanente do acaso e da casualidade. Nesse aspecto é irracional por sua falta de projeto e planejamento inicial. Sendo o MAL, fruto da casualidade cosmogônica e antropogônica do projeto divino e da existência humana, há uma premissa libertadora de possíveis inquietações sobre a própria culpabilidade que essa idéia traz à humanidade. Sim, aqui há a proposta de negarmos uma imediata culpabilidade sobre a estranheza do MAL, não é a imediata culpabilização que conduz do melhor modo à verdadeira responsabilidade, que é o questionamento mais emergente, e nesse sentido menos importante, ao ato do humano em relação ao que é o MAL. Quando não somos julgados culpados nos entendemos como libertos de uma cumplicidade nesse ponto imanente da qual ele poderia se crer impossibilitado de sair. É o espanto e a surpresa com o MAL que autentica uma futura e possível responsabilidade dos homens para com o MAL.
Pensando na surpresa e no espanto sob a idéia do MAL e em toda a falta de sistematização que há nessas duas idéias, nota-se que mesmo a teologia deve ser vilipendiada e realocada para um segundo momento, pois assumindo seu caráter explicativo e descritivo há de se perder o espanto e a surpresa do ideal do mal quando submetidos à teologia. Quando excluímos a culpabilidade humana do ideal do MAL e mesmo Deus mostra-se espantado e surpreso sob o MAL, vemos que, em termos filosóficos a irracionalidade é denominada demoníaca. Na questão de culpabilidade então, jaz colocada no seu verdadeiro local: o demoníaco. Não se trata nem de Deus, nem do homem. O MAL não é deste mundo, ele entrou aqui vindo de fora, ao menos, segundo Immanuel Kant. Com esse caráter demoníaco, o mal se revela de fato como pertencente não simplesmente a uma dificuldade, mas àquilo que podemos chamar de uma ordenação da desordem.
Com certeza, passa pelo pensamento que essa idéia do espanto, surpresa, talvez até alteridade que há do homem em relação ao MAL e, principalmente, a idéia do MAL ser tão alheia ao homem, como uma tentativa de minimizar o peso da responsabilidade que este homem tem na formulação e desenvolvimento da idéia do mal. Certamente não se trata de minimizar a culpabilidade nem de pensar, em uma sociedade, poder evitar a denúncia justa, a perseguição e a punição do culpado. E com certeza é importante estar atento a não se contentar em curar as feridas, pois isso seria insuficiente, mas é preciso pensar em reformas profundas. Acontece, porém, que acabamos não fazendo nem uma coisa nem outra, preocupados que estamos com a acusação. A culpabilidade, por mais real que seja não se encontra em posição radical e instauradora, e que ela é, portanto, nesse nível, relativamente fraca. Trata-se também, mais uma vez, de não colocar todo o problema em termos de culpabilidade e de atenuar a carga culpabilizadora. A vítima é nesse sentido um “deuteroculpado” por ter consentido com a ordem demoníaca do MAL. O homem, esse “deuteroculpado”, é seduzido pelo MAL. Nesse sentido fica mais evidente sua fragilidade. Não há nesse sentido maturidade suficiente que faça com que o homem resista à sedução proposta pelo demônio travestido sob a miragem inebriante do BEM. A fragilidade é exposta ao apresentar em gênesis um homem incapaz de discernir entre BEM e MAL. Ao assumir a sedução do MAL, o demônio tenta a humanidade tirando desta a possibilidade de entendimento, impetra em nós a incapacidade de refletirmos sobre nossos atos e, sob sedução, nos infringe o MAL.
Gesche apresenta que é preciso propor uma “des-moralização” do mal, pois o mal não deve ser abordado primeira e unicamente como um problema moral, mas como um problema de destino e objetivo. No moralismo há certos aspectos perversos, tal como o de pensar que a culpabilidade ocupa todo o campo da idéia do MAL. Não há apenas o aspecto da intencionalidade, o ideal de MAL ultrapassa essa idéia e pode chegar à justificação inconsciente do MAL. A tradição recorre ao MAL moral principalmente aos conceitos baseados na temática moral do MAL de culpabilidade, que acabou falhando em grande parte na sua verdadeira e específica abordagem. O MAL como desgraça não apresenta culpabilidade, embora nos a busquemos a todo custo. Assim, a des-moralização do problema do MAL não esvazia a culpabilidade, apenas a convida a situá-la de forma correta, mostrando que a culpa não é “atriz principal”, mas coadjuvante em relação à perversão mais radical.
Deus, em todo caso, se manifesta como adversário radical do MAL. Sua relação com ele é agonística, apresentando características de adversidade e de luta. Assim, o grito ateísta de um Deus que jaz quando em confronto facial com o mal é uma tentativa de salvaguardar a imagem de um Deus que se nega a ter comunhão com a idéia do MAL e todo o seu imaginário. Assim assumimos um Deus que se apresenta como o salvador, o que se dispõe contrario às artimanhas do MAL e vence-o. Já a figura do demônio é uma imagem exógena que ganha significado nas “lacunas” não preenchidas por Deus. Nesse sentido o MAL é a ausência do BEM, de igual modo como o demônio é o ideal antagônico de Deus.
A dogmática mostra que o MAL leva à perdição, estipulando um caminho aos que praticam e assumem a culpa. Portanto, a des-moralização e a re-dogmatização do MAL não nos afastaram das realidades do MAL. Ao contrário, elas nos ensinam até que a fome no mundo e as atrocidades da opressão têm a ver rigorosamente com a salvação do homem ou sua perda.
Buscando propor uma estrutura do mal, Adolphe Gesche aponta para uma topologia conceitual e ética (mal de culpa, mal de pena, mal de desgraça);topologia ontológica e gradual (mal de mal, mal de pecado, mal de paixão); topologia estrutural e seqüencial (actante-1 o ator, actante-2 o destinatário e actante-3 o terceiro auxiliar), todas propondo diversos níveis de desenvolvimento, bem como envolvimento e culpabilidade do homem com a idéia do MAL.
O texto caminha para seu fim propondo uma ação de salvação de Deus contra o mal e em favor do homem, passando por valores como a alteridade, a justificação e a absolvição. Assumindo a necessidade de uma mediação que se põe a debater sobre a justiça, que é um valor intacto e inerente à remissão e sobreposição do BEM contra o MAL. Assim a salvação se dá na integralidade do âmbito humano, por intermédio do homem e sob a supervisão do incansável do opositor ideal do MAL, o próprio DEUS.
Thiago Barbosa